Krig-ha, Bandolo! é um álbum histórico. Raul Seixas, o mítico rocker que começou a gravar música nos finais dos anos sessenta, é o autor desse pequeno milagre sonoro que hoje resolvemos recordar.
É impossível ficar indiferente ao génio imprevisível de Raul Seixas, o maluco beleza que tantas e tão boas canções, tantos e tão bons álbuns nos deixou ao longo da sua carreira. Falecido há quase trinta anos (sim, basta fazer as contas para se perceber que os números são cruéis, quase tão cruéis como a passagem do tempo sobre nós e sobre o mundo), o rocker, nascido baiano de Salvador, continua a ser uma referência na história da música brasileira, embora seja, ao mesmo tempo, bastante ignorado por cá, país onde essa mesma música popular continua a ser bastante conhecida, desde o mais distante samba de Noel Rosa ao melódico par vocal das recentes Anavitória. Sem juízos nem valores, estamos crentes que a falha existe, e por isso este texto servirá para, de forma dupla, minorarmos esse defeito do ouvido luso, ao mesmo tempo que evocamos um nome e um disco que há muitos e muitos anos nos está colado à pele. Valerá a pena começar por este particular título, para depois poder seguir o caminho que muito bem lhe aprouver, até porque a discografia é longa e forte, apesar de nela haver alguns momentos menores, sobretudo se comparados a este Krig-ha, Bandolo!, o primeiro disco a solo de Raul Seixas, depois de várias tentativas frustradas como Raulzito e os Panteras, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista e Rock Generation.
Krig-ha, Bandolo! é um caso muito sério. Gravado e lançado em 1973, o álbum é um verdadeiro caldeirão de sons e melodias de finíssimo recorte. Já nasceu clássico, sobretudo pela tremenda diversidade rítmica que apresenta, quase sempre assente no rock and roll que o músico tanto amava, mas igualmente pela qualidade de temas e letras cantadas. Saltando do rock mais clássico para o rockabilly, não deixa de se espraiar pelos caminhos do baião (convém perceber que Luiz Gonzaga será sempre uma referência para Seixas), pelo folk, pelo country, pela balada e até pelo gospel. Se a isto, que já não é pouco, juntarmos o primordial jeitinho brasileiro de musicar a vida, então perceberemos melhor o que poderemos encontrar neste disco seminal.
Como já terá percebido, tudo é possível encontrar em Krig-ha, Bandolo! Rigorosamente tudo. Nele, Raul Seixas é a “mosca que pousou em sua sopa”, ao mesmo tempo que se disfarça de “Al Capone” num rock de estrutura bem clássica. Raul Seixas chega mesmo a entrar “na tumba de um sábio faraó” em “As Minas do Rei Salomão”, da mesma e livre maneira como, mais tarde no alinhamento do disco, encarna um “índio Sioux” e um “cachorro urubú”. Por isso ele é a “Metamorfose Ambulante” que prefere “dizer agora o oposto do que (eu) disse antes”. Por isso Raul Seixas consegue com Krig-ha, Bandolo! fazer um disco que não cansa, mesmo depois de ouvido mil vezes, Por isso sabemos que Krig-ha, Bandolo! não tem tempo que desafie a sua modernidade, sobretudo por trazer consigo a essência das coisas eternas, a liberdade artística de arriscar. Krig-ha, Bandolo! é o que é “Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais / No cume calmo do meu olho que vê / Assenta a sombra sonora de um disco voador”.
Raul Seixas, em apenas vinte e nove minutos, consegue apresentar-se como o grande Messias do rock brasileiro. Magro, quase escanzelado, foi muitas vezes olhado com a desconfiança típica de quem suspeita de tudo o que é excêntrico e original. Consciente disso (o estranho título do disco, retirado de um gibi de Tarzan, quer literalmente dizer “Cuidado, lá vem o inimigo!”) mostra-se na fotografia da capa com uma atitude marcadamente irreverente e sincera. Aqueles olhos não escondem o que os deixou naquele estado. Livre de todas as amarras, Raul Seixas e Krig-ha, Bandolo! são puro ouro. E será tolo aquele que não aproveitar o álbum que aqui hoje recordamos.
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