Criada por Vangelis para o filme de 1982 de Ridley Scott, a música de “Blande Runner” começou por conhecer em disco uma versão com apenas alguns excertos do que se escutava no ecrã. Mais recentemente o próprio Vangelis gravou a sua versão em disco.
O ano é o de 2019… Parecia distante quando em 1982 o filme surgiu nos ecrãs e a sua visão algo distópica de uma Los Angeles onde os néones sugerem sonhos quase impossíveis entre uma cidade sob incessante chuva tinha aquele ar de ameaça, embora distante. Tal como há não muito tempo nos aproximámos do 1999 em que vimos (em Espaço 1999) a Lua a ter uma base habitada ou do ano 2001 que acolheria uma missão a Júpiter (numa visão conjunta de Kubrick e Arthur C. Clarke), também o 2019 que Blade Runner: Perigo Iminente, de Ridley Scott – baseado no conto Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick –, inscreveu no calendário da nossa história futura ficcionada se aproxima sem que muito do que ali vemos esteja materializado. Uma vez mais há que ter em conta que a ficção científica não é uma arte divinatória nem procura fazer previsões. Fala, antes, e sempre, de nós, do que somos, do tempo em que vivemos, mesmo que use outros tempos, gentes e lugares para explorar os nossos sonhos e, sobretudo, os medos.
Em tempos cheguei a descrever Eldon Tyrell (uma das personagens secundárias, mas de ação central no filme) como uma espécie de Gepeto do século XXI. Mas em vez de ter uma loja de brinquedos e, nela, um boneco cujo nariz cresce quando mente, criou uma corporação colossal com implicações na economia da Terra e dos novos mundos colonizados. Uma das suas mais importantes contribuições para o estado das coisas nesse mundo global e transplanetário são os chamados replicants, seres em tudo idênticos a nós, humanos, mas com maior desenvoltura física e mais vastas capacidades intelectuais, desenhados segundo as funções a que são destinados, de forças militares a objetos de prazer. O seu maior senão é um tempo de vida, que se limita a quatro anos a contar a partir do momento em que são ativados. Mas tal como lembramos na história de Pinóquio, chegou um dia em que os replicants também desejaram ser humanos (ao fim de um tempo acumulam memórias reais – e não apenas as implantadas com que “nascem” – e adquirem experiências emocionais). São vivos, de carne e osso (artificial, mas as diferenças quase nem se notam) e desejam poder ultrapassar aquele cronómetro em contagem decrescente com o qual vivem inevitavelmente.
Das palavras de Philip K. Dick, Ridley Scott partiu para criar Blade Runner, que mesmo tendo conhecido estreia em 1982, só num director’s cut nos anos 90 traduziu a versão fatalista e desencantada com que o realizador desde sempre encarara esta história. Mais do que apenas uma trama sobre máquinas que anseiam ser homens, a trama sugerida por Philip K. Dick coloca-nos antes num mundo em que o próprio homem perdeu a humanidade. E não há ali nada mais “automático” do que as rotinas de busca e morte personalizadas pelos blade runners (ou seja, os caçadores de replicants na Terra, onde são proibidos). Vale a pena acrescentar que Philip K. Dick pensou estas figuras tendo em mente a memória de forças ao serviço do III Reich, e a quem o escritor dizia que não se podia aplicar a designação de humano. Tendo ainda acompanhado o desenvolvimento da preparação da adaptação da sua ideia escrita ao filme, notou que havia diferenças entre um e outro. E uma delas tem mesmo a ver com o que era o tema central da narrativa de K. Dick: o facto de Deckard (ou seja, o blade runner interpretado por Harrison Ford) ser uma figura desumanizada no seu processo de caça aos replicants.
Na visão assinada por Ridley Scott, Blade Runner – Perigo Iminente acompanha Deckard na sua caça, em ambiente urbano, a um grupo de quatro replicants da série Nexus 6 que, tal e qual dizem eles mesmos, viram com os seus olhos criados em laboratório coisas que os humanos nem imaginam. Estão numa missão de vida ou de morte na Terra, em busca do seu “criador”, ao qual querem apenas pedir uma coisa: tempo. Ou seja, vida.
Além deste debate sobre o que é do foro humano e onde estão as fronteiras que nos podem eventualmente separar da máquina o filme junta por cenário uma visão de uma Los Angeles de um futuro (agora próximo) que adquiriu um peso icónico na história do cinema de ficção científica. A cidade é lúgubre e chuvosa, sempre movimentada mas profundamente solitária. Os espaços e ambientes evocam memórias do film noir e houve mesmo quem chegasse a apontar que era um filme que olhava 40 anos à frente lembrando estilos de há 40 anos.
A música, assinada por Vangelis – naquela que é talvez a mais importante das suas bandas sonoras –, traduz na essência essa mesma ideia. E se no Love Theme a presença do saxofone transporta essa carga evocativa, que é ainda mais notória em One More Kiss Dear, já a essência dos momentos de música incidental que acompanham os planos gerais da cidade ou os diversos percursos entre edifícios sugerem o olhar adiante, que os registos eletrónicos sugeriam.
Pela música são ainda reforçadas as atmosferas de tensão e solidão que toldam a cidade, assim como a contaminação de formas da cultura asiática que sugerem novos paradigmas de referência na economia.
Agora, quase 40 anos volvidos sobre a estreia, Blade Runner tem o valor de um clássico e toda a história complexa de versões que o filme conheceu (da originalmente aprovada pelo estúdio à imaginada pelo realizador) está disponível numa soberba edição “integral” em Blu-ray.
Ao mesmo tempo a banda sonora tem merecido atenção de vários lançamentos recentes que, tal como no Blu-ray, dão conta da não menos complexa história de desentendimentos que a música criada para o filme conheceu. A edição original da banda sonora não correspondia exatamente à visão imaginada por Vangeli, apresentando em disco interpretações de parte do score por si composto, pela New American Orchestra. Supostamente mais perto do seu conceito original será assim o disco interpretado pelo próprio Vangelis, que há pouco tempo chegou aos escaparates… Cada um agora escolha a versão ideal para esta visão assombrada de um futuro que, pela lógica do calendário, agora já habita o nosso passado.
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