50 anos é muito tempo. Lançado em 1968, o disco Tropicália ou Panis et Circenses mostrava ao Brasil (e mais tarde ao mundo) a modernidade nascente de uma geração pronta para o combate. Em vez de armas de fogo e repressão, a palavra cantada e a estética acolhedora e fulgurante do amor e da paz.
“Derramemos o vinho no linho da mesa”
“Miserere Nobis”, Gilberto Gil e Capinan
O Brasil não estava preparado para tanta e tão suculenta novidade. Se quisermos ser honestos no que dizemos, nem os próprios intervenientes seriam capazes de imaginar (mesmo os mais otimistas) o alcance do que haviam criado. Reunir nomes como os de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão, José Carlos Capinan (que poeta magnificamente moderno!) e Rogério Duprat num só disco, foi coisa irrepetível que poderia resultar numa de duas maneiras: fracasso absoluto ou triunfante sucesso. A história mostrou, e mostra até hoje, que os ouvidos do mundo souberam abraçar a festa miscigenada de ideias, sons, culturas e formas de expressão que os nomes mencionados foram capazes de criar. Estava feito o histórico disco coletivo de 1968. A música popular brasileira nunca mais foi a mesma e a “manhã tropical” desse dia continua a mostrar-se desfraldada e triunfante na “geléia geral brasileira”.
O importante era misturar, triturar as essências, reduzindo-as a um novo e mais cheiroso pó artístico. Mesmo que isso custasse o preço da desconfiança, mesmo que a traição a um fértil passado sonoro fosse convictamente assumida por algumas das estrelas da bem comportada MPB. Era um novo tempo emergente, uma vontade de rasgar certezas e de apostar em sobreposições desse mesmo material rasgado, acrescentando cola / coca-cola / yê-yê-yê / bumba meu boi / guitarras elétricas / “um beijo preso na garganta” / Estação Primeira de Mangueira / “Bat macumba”, tudo “nos Estados Unidos do Brasil”.
O que hoje se celebra é o repentismo artístico de uma geração, a ousadia inusitada, o génio musical e intelectual da uma juventude inquieta. É isso que encontramos em “Miserere Nobis” (tende piedade de nós, numa simples tradução literal), em “Panis et Circenses” (pão e circo, estratégia política utilizada pelos romanos para contentar o povo desse longínquo tempo), em “Lindonéia” (canção a que Nara Leão, a menina amada por todo o Brasil bossanovista, soube dar voz, colando-se assim, inesperadamente, aos malditos tropicalistas), mas também em “Parque Industrial”, “Geleia Geral”, “Baby” (hino maior entre os maiores hinos do álbum), “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (enorme flechada no regime ditatorial vigente, visível em versos como “debaixo da lama / debaixo das botas”, “Mamãe Coragem” ou Bat Macumba” (canção de letra concretista até à medula).
O triunfo do disco deve-se também, e em boa parte, aos torcidos arranjos do grande maestro Rogério Duprat, psicadélicos e experimentalistas. Duprat, como todos os restantes membros da turma tropicalista, estava interessado em esbater toda e qualquer barreira, sobretudo as que afastavam a música erudita da chamada música popular. Nesse sentido, Tropicália ou Panis et Circenses também triunfa, uma vez que as misturas sonoras que encerra dão força a essa abolição tão desejada.
Estava, então, nessa época já próxima do final dos anos sessenta, derramado “o vinho no linho da mesa”. A pureza imaculada das formas mais tradicionais da música que popularmente se produzia no Brasil estremeceu, e o epicentro desse imenso terramoto sonoro furou todas as escalas de Richter e de Mercalli da envergonhada intelectualidade brasileira da época. Depois, com um diagnóstico cada vez menos favorável, acabou por falecer. A partir daí, a música popular brasileira cresceu para lados e horizontes muitos diferentes, e os nomes dos artistas aqui mencionados souberam, através das suas obras, honrar o compromisso inicial: a música não poderá nunca ser porta voz de silêncios impostos. Ela é liberdade, ela é desassombro, ousadia, e o que mais quisermos fazer dela.
Glorifiquemos Tropicália ou Panis et Circenses, porque exaltar essa obra é uma excelente e inteligente forma de celebrar a vida!
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