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Em pleno século XX, Blue Lines inventa o som do século XXI. A receita é simples: música de dança para a cabeça e não para os pés.
É sabido que 1991 foi ano de boa colheita. Vem-nos logo à cabeça Nevermind, cujo inesperado sucesso mudou tudo na indústria musical. Mas no mesmo ano saíram outras pérolas, menos famosas mas, porventura, mais influentes. Parece ser o caso do álbum de estreia dos Massive Attack, que inventa o som do novo milénio, uma década antes de ele chegar ao calendário. Damos hoje um pontapé numa pedra e saem de lá trinta novas bandas de chill-out, todas roubando a fórmula deste disco inaugural: tempos lentos, texturas saborosas, diluir de fronteiras entre géneros, ambiências cinematográficas, música de dança para a cabeça e não para os pés. Não foram os Massive que inventaram a electrónica contemplativa para desacelerar no after-party; mas foram eles que a libertaram da função e a transformaram em obra de arte. Uma emancipação que coincide com o declínio da movida do acid house. Para quê sair à noite quando em casa temos a perfeição de Blue Lines?
Hoje, esse som é ubíquo, para o bem e para o mal. Para o bem, quando os herdeiros Portishead, Air, Gorillaz ou Beck acrescentam valor e não deixam descer a fasquia. Para o mal, nas suas imitações mais baratas, a música de fundo de jantares pseudo-sofisticados, de anúncios televisivos pseudo-urbanos, de lobbies de hotel da pseudo-moda, sempre gritando aos nossos ouvidos: relaxem!, relaxem!, relaxem! O curioso é que o disco que criou o chill-out moderno é tudo menos relaxante. Está pejado de paranóia urbana, a banda-sonora de quem percorre à noite becos perigosos de Bristol, “olhando para ti para ver se estás a olhar para mim a olhar para ti”.
No princípio era o hip-hop. É daí que os Massive vêm, e ainda é nesse território que edificam Blue Lines. Mas, atenção: é um hip-hop assimilado a partir do ponto de vista britânico e multicultural do underground de Bristol e isso faz toda a diferença (“english upbringing, background caribbean”, define-se Tricky na canção-título). O resultado é um hip-hop original e mestiço, que soa a Bristol e não a Bronx, e cujo rap é sussurado com indolência num sotaque inglês e working-class. O contraste entre este rap inexpressivo e as vozes quentes e sofridas de Shara Nelson e Horace Andy é um dos segredos do charme de Blue Lines.
Onde o hip-hop americano tende a fazer o culto do ego, do materialismo e da violência, o trip-hop de Bristol prefere ser anónimo, austero e pacífico: “vai-te embora com as tuas armas / não as queremos / o dinheiro, a raiz de todo o mal”. Um pacifismo que apenas tem o limite da legítima vingança: “mas se tu magoares o que é meu, podes querer que retaliarei”, canta Shara Nelson com arrepiante convicção em “Safe From Harm”.
Cozinhada a base da pizza (a tal de queijo, tomate e hip-hop), podemos agora adicionar os ingredientes. A voz magoada de Shara Nelson é puro soul, e “Unfinished Sympathy”- o mais belo soul alguma vez feito deste lado do Atlântico. O baixo arrastado, e destacado na mistura, é dub jamaicano, rimando na perfeição com a voz expressiva de Horace Andy, um ícone do reggae da velha guarda. Pozinhos de electrónica polvilham todo o disco, mas bem mais discretos do que nos álbuns seguintes. A neura urbana e sombria vem do pós-punk, o reduto branco no mais negro dos discos dos Massive.
Blue Lines condensa em 45 minutos uma parte significativa da história da pop, síntese brilhante em que o todo é maior do que a soma das partes. A partir deste disco, inaugurou-se uma nova era na pop anglo-saxónica: a idade da impureza. Antes de Blue Lines, as guerras entre géneros eram compreensíveis, até quase saudáveis, fortalecendo as identidades em confronto. Depois de Blue Lines, as mesmas guerrinhas tornam-se paroquiais, resquícios anacrónicos de um passado purista que não mais voltará.
A contemporaneidade é mestiça, o futuro da humanidade também. Vinte e seis anos depois, Blue Lines continua a saber a amanhã. Nunca o que virá soube tão bem.
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