quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

TRAGO “TRAGO”

 De uma série de experiências e encontros entre quatro artistas de São Paulo nasceu um álbum que vale a pena colocar na lista dos mais cativantes deste 2024 ainda em construção. Cantora e compositora, Tulipa Ruiz tem por hábito criar vídeos filmados à volta da cidade e que depois disponibiliza nas suas redes sociais. Esses fragmentos de olhares estão na génese de um processo que das imagens fez nascer música, contando com as intervenções de Rica Amabis (programações e samples), Alexandre Orion (batidas) e Gustavo Ruiz (guitarras e baixo), irmão de Tulipa que, depois desta caminhada, colheu de volta as ideias entretanto transformadas, acrescentando as palavras e a voz. 

O álbum começou por se der a conhecer com uma primeira canção, “Porvir”, que, lançada na companhia de um teledisco, dava desde logo conta da experiência desenhada entre artes cruzadas que ali ganhava forma. Inspirada por um velho samba de 1940 de Wilson Batista e cantado por Ataulfo Alves (cuja letra original nos contava que “O bonde de São Januário/leva mais um sócio otário/só eu não vou trabalhar”, criando uma imagem do trabalhador como figura sem voz crítica e que incomodou o Departamento de Imprensa e Propaganda criado sob o governo de Getúlio Vargas), a segunda canção a ser revelada foi “Sou eu que vou trabalhar”, um retrato contemporâneo de rotinas de vaivém na grande cidade herdando um ângulo semelhante de observação. A terceira revelação fez-se com a mais poética “Dolores Prestes A Levitar”… Ficava claro, aos poucos, que algo raro e belo estava aqui a nascer.

Na verdade “TRAGO” (que tanto é nome do projeto como título do disco) teve uma génese longa que precede em muito estes três primeiros episódios de comunicação. De resto, algumas das canções aqui reunidas surgiram inicialmente entre 2012 e 2016 nas Palavras Cruzadas (um espetáculo idealizado por Marcio Debellian que desafia artistas das áreas da palavra, da música e da imagem a apresentar criações inéditas). Essa lógica de encontros e cruzamentos de artes acabou por gerar as várias sequelas que agora se juntam no alinhamento de um álbum ao qual chamaram também, em “Fumante Padrão”, a colaboração do recentemente desaparecido João Donato, que gravou a sua contribuição em sua própria casa, em 2017. Vale a pena lembrar que esta figura lendária da música brasileira já havia colaborado com Tulipa Ruiz em “Gravidade Zero”, single editado em 2019. Brian Jackson (flautista) e Rodrigo Brandão (rapper que escutamos na faixa-título que sublinha a dimensão crítica de um disco que assim retrata um tempo e um espaço) são outras forças criativas reunidas nesta aventura que junta ao desafio multimédia uma visão de liberdade criativa nas formas musicais (já que vamos de terreno indie com gosto pelas batidas a tonalidades jazzy ou até mesmo o pontual experimentar do noise em “Chorume”) e uma cativante dimensão poética. “Eu olho pro céu, antes de ser engolida pela cidade. /Eu engulo a cidade antes de olhar para o céu”, canta Tulipa Ruiz em “Espiritualizaderrima”, como que a sintetizar o modo como um disco pode traduzir o cruzamento de uma força criativa com um tempo e um lugar. Pois é, 2024 passa por aqui. 


“TRAGO”, do coletivo TRAGO, está disponível em CD e nas plataformas digitais em edição pelo Selo Sesc (com distribuição da Tratore)


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