Benjamin Clementine aprofunda a teatralidade da sua música numa reflexão sobre a xenofobia na Europa. Se primeiro estranhamos a sua excentricidade, depressa nos comovemos com a sua beleza invulgar.

Clementine podia ter jogado pelo seguro, e copiar a fórmula que lhe garantira em 2015 o Mercury Prize. Mas teve a ousadia de explorar novos caminhos. Não foi só integridade artística que nos ofereceu. Foi também um disco imenso.

A primeira vez que escutamos I Tell a Fly, ficamos perdidos, talvez por não termos o mapa do formato-canção para nos guiar. Há saltos e colagens, melodias lindíssimas subitamente interrompidas, e tudo nos parece uma enorme salgalhada: solos de piano à Debussy chocando com baterias frenéticas de jazz contemporâneo, coros espectrais à Blackstar tropeçando em cravos dissonantes, vozes operáticas à prog rock atropelando sintetizadores distorcidos.

Mas a cada novo regresso, aquilo que nos parecia uma excêntrica cacofonia, é afinal mais belo do que At Least By Now: as melodias são mais inventivas, a voz mais versátil, e o dramatismo de Clementine, antes apenas latente, é agora um saboroso extravasar. Como a coca-cola de Pessoa, primeiro, estranha-se; depois, entranha-se. Não é sempre assim que acontece com as obras-primas?

I Tell a Fly é uma banda-sonora de um filme que nunca foi realizado, ou talvez uma ópera que nunca conheceu libreto- o que é uma pena, pois toda a sua teatralidade nasceu para ser encenada. Enquanto isso não acontece, alberguemos as mil personagens de Clementine no palco secreto dos nossos headphones.

Trata-se de uma ópera política, em ruptura com a intimidade do primeiro disco. O seu tema é o espectro de Goebbels de novo a pairar sobre a velha Europa: o ódio boçal ao diferente, os refugiados vivendo como ratos em campos lamacentos, Le Pen brincando ao terceiro reich dos pequeninos. Será possível encontrar o amor nestes tempos de cólera?- é a pergunta que guia I Tell a Flie. Clementine levou porrada a vida inteira mas o seu coração é demasiado puro para não responder que sim. Como Cristo na cruz, Clementine perdoa a todos os canalhas para nos salvar.

Que a alma penada de Nina Simone tenha pousado sobre Clementine, sabíamos já desde At Least By Now. Que o espírito de Roger Waters tenha migrado também, mesmo com ele ainda vivo, isso é que não estávamos à espera. Quando ao sentimento de Simone se soma o conceptualismo de Waters, não poderia acontecer outra coisa se não este grande, enorme disco.