Contrastando pelo jogo de instrumentos e ambientes com a pujança que passa pelos palcos, como viu quem passou pelos concertos desta atual digressão, “Shadow Kingdom” revisita velhas canções (algumas delas a ter novas vidas ao vivo).

Depois de uma etapa dedicada a incursões por caminhos do grande cancioneiro americano, aos quais dedicou três álbuns de estúdio consecutivos – “Shadows In the Night” (2015), “Fallen Angels” (2016) e “Triplicate” (um triplo, editado em 2017) – eis que chegou em 2020, já em plena pandemia, mas gravado no início do ano, antes da urgência sanitária se ter tornado global, o assombroso “Rough and Rowdy Ways”, talvez o mais marcante dos álbuns de Bob Dylan desde “Time Out of Mind” (1996), disco que arrumava olhares seus sobre o mundo em que vivemos, através de uma uma escrita diferente da que sugeria leituras mais imediatas como as que cantava quando nos dizia que os tempos estavam a mudar e a resposta era soprada pelo vento, mas nem por isso menos pessoal e política. Ao contrário do que era sugerido pelo monumental “Murder Most Fowl”, o longo single com quase 17 minutos de duração que precedera a edição do álbum (e que depois ocupou todo o disco 2), o alinhamento de “Rough and Rowdy Ways” revelava musicalmente um Dylan firme na identidade de uma obra construída da assimilação de alicerces de uma América profunda e antiga. A mesma identidade que definiu assim o rumo da digressão que agora nos visita – e que rompe (quem sabe, apenas interrompe) a lendária Never Endingn Tour – e que acaba de dar ao álbum de 2020 (e aos próprios concertos) uma espécie de disco-companheiro (mas em jeito de contraste) no magnífico “Shadow Kingdom” acabado de editar.
O alinhamento do concerto de ontem à noite no Campo Pequeno – no qual vimos um Dylan de músculo firme, ora sentado ora de pé, mas sempre atrás do piano, perfeitamente integrado no som da pequena banda que o acompanha – foi na todo ele, à exceção de “Gotta Serve Somebody” (do disco de 1979 “Slow Train Coming” e “Gotta Serve Somebody”, do algo esquecido “Shot Of Love” de 1981, e de uma enérgica versão de “Not Fade Away” (dos Crickets, mas feita célebre pela leitura dos Rolling Stones), feito das canções de “Rough and Rowdy Ways” (todas, à exceção de “Murder Most Fowl”) e de cinco das 13 faixas que agora encontramos em “Shadow Kingdom”, um novo disco de versões mas que, ao invés dos álbuns editados entre 2015 e 2017, têm todas elas em comum um mesmo autor: o próprio Dylan.
Projeto nascido e criado em plena pandemia – como de resto sugere a foto que domina o inlay do álbum (na qual só Dylan não tem máscara sobre o rosto), Shadow Kingdom: The Early Songs of Bob Dylan” é uma viagem feita através de canções que Dylan gravou sobretudo entre 1965 e 1973, com exceção nesta janela de tempo apenas para “What Was It You Wanted” (de 1989) e do novo instrumental “Sierra’s Theme” que fecha o disco. Versões criadas para um projeto de cinema, filmado pela israelita Alma Har’el durante uma semana de 2021 num estúdio em Santa Monica (California), as canções que escutamos, ligadas umas às outras, como uma atuação ao vivo poderia pedir, apresentam esta coleção de memórias numa abordagem discreta, de alma mais próxima de raízes folk (e sem percussão) do que da abordagem elétrica com que agora Bob Dylan recupera algumas destas mesmas canções com a banda que o acompanha em palco (e que não é a mesma deste disco). A seleção, como lhe é característico, não procura cedência aos apetites por clássicos, apesar de aqui juntar algumas peças históricas como “Forever Young”, “I’ll Be Your Baby Tonight” ou “It’s All Over Now Baby Blue”. Retrato de um momento, que o filme – que teve brevíssima vida pública – captou, “Shadow Kingdom” serve agora de livro de memórias a escutar como contraponto (mas em sintonia na curadoria) face ao que escutamos, ao vivo, durante a Rough and Rowdy Ways Tour, talvez a mais entusiasmante etapa recente de vida na estrada de um Bob Dylan, acabado de somar mais de 80 anos, mas em evidente forma (como constatou quem o viu nesta nova passagem por estas bandas).
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