Através dos Nightmares In Wax e, depois, já como Dead or Alive, um percurso definido entre 1979 e 1982 mostra como de um berço pós-punk e gótico emerguiu uma rota que levaria Pete Burns a assinar um dos êxitos maiores da pop dos anos 80.
No final dos anos a apertada Mathew Street, onde outrora os Beatles reuniam as primeiras plateias em noites a foi no mítico Cavern, estava novamente no centro das atenções. Por um lado através do Eric’s, o clube que servia de berço a toda uma nova geração de músicos da cidade (dos Teadrop Explodes e Acho & The Bunnymen aos OMD, entre muitos outros), por outro na muito frequentada Probe Records que, antes da atual e mais tranquila casa ao lado do centro cultural Blue Coat (na verdade não muito longe dali), era outra das casas musicalmente mais ativas da velha rua cheia de histórias e canções que animava o centro de Liverpool. Por detrás do balcão estava então um muito jovem Pete Burns, vestido como se fosse um frequentador da loja londrina de Vivienne Westwood e Malcolm McLaren e, ao que se conta, figura que intimidava os eventuais clientes que ali entrassem com o disco “errado” na lista de compras… Foi entre o balcão da Probe Records e o Eric’s que alguns dos primeiros passos do jovem vendedor de discos começaram a dar sinais de saltar para o outro lado… Ou seja, para entre as espiras do vinil. Deu que falar, em 1977, uma atuação única a bordo das Mistery Girls, banda que não sobreviveu à estreia em palco e na qual estavam ainda Pete Wylie (mais tarde nos Mighty Wah) e Phil Hurst. Em 1979, com outra solidez, formou os Nightmares In Wax, uma nova banda, que o juntou ao teclista Martin Healy, ao guitarrista Mick Reid, o baixista Rob Jones (que cederia o lugar a Walter Ogden) e o baterista Paul Hornby. Estrearam-se igualmente no Eric’s, numa primeira parte dos Wire e, um ano depois, lançavam um EP na etiqueta diretamente ligada ao clube. “Birth of a Nation” (1980) incluía três canções – “Black Leather”, “Girls Song” e “Shangri-La” e, tal como a música que tocavam ao vivo, traduzia o clima pós-punk em que haviam nascido, acrescentando um tom assombrado, desencantado, cinicamente elaborado, que por aqueles dias começava a juntar uma série de novas bandas britânicas sob o rótulo “gótico”. Estes foram, assim, os primeiros passos em disco de Pete Burns. E estas três são agora as faixas de abertura de um CD triplo que nos conta a história que os Dead or Alive protagonizaram em Liverpool antes de serem assinados pela Epic Records e se estrearam, com sonoridade mais polida, no magnífico “Sophisticated Boom Boom” (1984), disco que precedeu o salto gigante que dariam em 1985 quando, já sob o comando na produção da equipa Stock Aitken e Waterman, apresentam o single “You Spin Me Round (Like a Record)”.
A memória dos Nightmares in Wax abre assim uma história que, discograficamente, reflete sinais de evolução rumo a descobertas recentes do próprio Pete Burns, que se deixa fascinar pelos sons que escuta entre discos de Sylvester ou Patrick Cowley que encontra nas pistas de dança e que o levam a procurar outros caminhos para lá do que havia experimentado na banda que, depois do EP de 1980, conhece convulsões internas que ditam o seu desmembramento. E então, ainda com Martin Healy, mas agora contando com Sue James (baixo), Adrian Mitchley (guitarra) e Joe Musker (bateria), começa a ensaiar novas canções. Inicialmente respondem como No Self Control até que, nas vésperas de editar um single de estreia, mudam de nome para Dead or Alive. “I’m Falling” abre, em 1980, um quarteto de edições a 45 rotações que acompanham uma série de transformações internas na banda, que em 1981 acolhe o guitarrista Wayne Hussey (futura voz dos The Mission), assim como assiste às progressivas chegadas de Mike Percy (baixo e guitarra), Steve Coy (bateria) e, mais adiante, Tim Lever, que formariam com Pete Burns o quarteto que registaria os três álbuns mais marcantes da obra dos Dead Or Alive: “Sophisticated Boom Boom” (1984), “Youthquake” (1984) “Mad Bad and Dangerous to Know” (1987).
Depois de “I’m Falling” surgem “Number Eleven” (1981), “It’s Been Hours Now” (1982) e “The Stranger” (1982), singes que revelam uma cada vez mais evidente presença de uma secção rítmica mais musculada mas que ainda traduzem os ecos diretos das raízes pós-punk e o clima “gótico” que lhes servira de berço. Visualmente o percurso sugeria ousadia, sobretudo na imagem do vocalista Pete Burns, que vincava expressões de androginia bem antes do “caso” mais mediático que surgiria com Boy George e os Culture Club perante o impacte global de “Do You Really Want To Hurt Me”. A caixa que a Cherry Red agora edita junta aos lados A e B de todos estes singles (incluindo as versões remistradas de “Girl Song” e “Shangri-La”, dos Nightmares In Wax, que surgem num máxi em 1985) as sessões que o grupo registou para a BBC e gravações ao vivo em programas de televisão (reunidas no CD3), que envolvem temas para além dos que fixaram em disco. As mais significativas pistas para compreender a mutação que ganha forma entre este lote inicial de singles e o álbum de estreia (nascido já sob um contrato com a Epic Records) surgem no CD2 que reune uma série de maquetes, entre as quais estão instrumentais que exploram eventuais novos caminhos a apontar azimutes à pista de dança, assim como primeiras linhas para “Misty Circles”, canção que, já em 1983, na estreia pela Epic, os junta ao produtor Zeus B Held e prepara o caminho que os levaria ao álbum de estreia no ano seguinte no qual gravam uma versão de “That’s the Way I Liked”, dos KC & The Sunshine Band que, na verdade, surgira como citação em “Black Leather”, na fase Nightmares In Wax. O destino já ali estava escrito, portanto…
Referência final para o cuidado desta edição que inclui linear notes que ajudam a compreender esta etapa na vida de Pete Burns, juntando ainda fotos da época e as capas dos lançamentos tanto de Nightmares In Wax como de Dead or Alive. Uma bela edição de material de arquivo, portanto.
“Let Them Drag My Soul Away – Singles, Demos Sessions and Live Recordings 1979-1982”, dos Dead or Alive, está disponível em 3CD e nas plataformas digitais numa edição da Cherry Red. Há também uma edição em 2LP em vinil, com alinhamento reduzido.
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