Editado em 1999 o álbum “Dead Bees on A Cake” assinalava um final de ciclo para uma etapa de trabalho a solo iniciada com o fim dos Japan e que, na verdade, desde “Secrets of The Beehive” (1987) e do single “Pop Song” (1989), tinha cedido terreno a uma série de projetos em colaboração, desde uma frutuosa parceria com Robert Fripp e de colaborações com Ryuichi Sakamoto, Hector Zazou, Russel Mills ou o projeto Tweaker ao histórico reencontro com os velhos companheiros, na pouco pacífica reencarnação sob a designação Rain Tree Crow. Contudo, apesar dos desentendimentos que a criação do álbum nascido da pontual reunião com Steve Jansen, Richard Barbieri e Mick Karn, foi entre os métodos de trabalho usados nessas sessões, assim como em experiências antes realizadas ao lado de Holger Czukay que David Sylvian encontrou a chave para definir um novo rumo para a sua música tanto que, mesmo não correspondendo toda a obra recolhida nesta nova caixa a essas metodologias, a visão geral da etapa fixada em disco entre 2003 e 2014 corresponde, sobretudo, a um desvio de atenções para processos ligados à improvisação, nem todos todavia dirigidos a formas e timbres semelhantes. E tudo começou em estúdio, com uma guitarra, dando forma à velha máxima: a primeira ideia é a melhor ideia. “The Only Daughter” surgiu num ápice. E sugeriu um caminho…
Coube ao álbum “Blemish”, editado em 2003, ser a primeira expressão desses rumos. O disco surgiu num estúdio que começara a ser montado pelo próprio David Sylvian, acabando por refletir ecos recentes do seu quotidiano, traduzindo assim, de certa forma, reflexos diretos de convulsões na sua vida privada e até mesmo o final de uma longa etapa de relacionamento com a Virgin Records (da qual se afastou em 2002). Se a dimensão mais pessoal se manifestou sobretudo nos caminhos que as palavras tomaram, já a afirmação definitiva de uma noção de liberdade (que na verdade sempre habitara os caminhos da obra de Sylvian) era então consequência direta da criação de uma etiqueta própria pela qual, daí em diante, o músico passou a lançar os seus discos.
Deixando para trás a forma da canção “pop” as sessões que definiram o caminho para “Blemish” colocaram em cena uma música ambiental onde texturas, espaços e incidentes ganhavam rumo através da presença unificadora da voz. O trabalho de descoberta fez-se especialmente a solo, contando com a colaboração em três canções do guitarrista Derek Bailey (que Sylvian tinha já ponderado desafiar nos tempos de “Gone To Earth”) e Christian Fennez. “Blemish” teve um nascimento discreto em maio de 2003 apenas através de um lançamento digital (promovido pelo próprio site do músico), ao que se seguiu, semanas depois, uma edição em CD que inaugurou o catálogo físico da Samadhisound, entretanto criada pelo próprio Sylvian. As novas ideias focadas numa vontade em explorar os espaços da improvisação e o trabalho com electrónicas tiveram continuidade direta num disco com remisturas de temas desse álbum de 2003 através das quais, sob desafios lançados a outros músicos, David Sylvian aprofundou uma visão em construção. Editado em CD em 2004, “The Good Son vs The Only Daughter’ não é contudo um vulgar álbum de remisturas, mas antes um patamar de reconstrução das canções, algumas tendo sido inclusivamente regravadas sob a colaboração com novos parceiros de trabalho em estúdio. Músicos como Burnt Friedmann (com quem formaria os Nine Horses pouco depois), Ryoji Ikeda ou o coletivo Sweet Billy Pilgrim são valor acrescentado num disco que ajudou aqui a solidificar a nova etapa na obra na obra de David Sylvian.



Dois anos depois de “Blemish” David Sylvian deu visibilidade a um espaço de colaboração com regras de partilha de protagonismo como não conhecia desde os Japan (mais até que na breve reunião como Rain Tree Crow). Respondendo comoNine Horses, a nova banda, cuja história antecedia a própria gravação de “Blemish” (numa altura em que o irmão Steve Jansen estava a viver consigo) mas teria conclusão na sequência da digressão na qual apresentou o álbum de 2003, juntava a Sylvian as presenças do irmão e mais recorrente colaborador Steve Jansen e ainda Burnt Friedman. O álbum “Snow Borne Sorrow”, editado em 2005, assegurou a estreia em disco de um projeto que tanto musical como tematicamente revelavam novos focos de atenção. As formas seguiam caminhos com afinidade para com os mais recentes discos de Sylvian, com as palavras que vincavam marcas de atenção com angústias e reflexões sobre o mundo do seu tempo. A experiência teve continuidade em 2007 no EP “Money For All” no qual se juntavam remisturas de canções de “Snow Borne Sorrow” e inéditos.
Gravado ao longo de três anos entre Viena, Tóquio e Londres, “Manafon” acentuou em 2009 a lógica de trabalho que “Blemish” já ensaiara, optando desta vez por convocar um ensemble mais alargado de colaboradores. O método de trabalho partia de sessões de estúdio para a qual os músicos, muitos deles com vivência em áreas do jazz, entravam sem uma nota escrita. Sylvian trabalhava depois o material gravado, eventualmente acrescentando elementos e juntando finalmente a sua voz. “Manafon” transcendeu uma vez mais a lógica formal da canção, propondo quadros onde os acontecimentos definiram espaços e ambientes (essencialmente melancólicos), dando-lhes depois as palavras os jogos de sentidos. A inspiração para a escrita das letras surgiu de um interesse pela poesia do galês R.S. Thomas, o próprio título do álbum correspondendo ao nome da povoação onde este viveu. Desafiante, o disco vincou a definição destes caminhos como uma nova, importante e consequente etapa na obra de David Sylvian. Tal como acontecera com “Blemish” o álbum não representou um episódio isolado e, dois anos depois, e uma vez mais perante uma impressionante família de colaboradores, apresentou um novo disco que, apesar de ter “Manafon” como ponto de partida, não representou, tal como acontecera com “The Good Son VS The Only Daughter”, um esforço de remisturas. “Died In The Wool – Manafon Variations” traduziu mais uma experiência de reinvenção criativa a nível da composição incluindo temas com origem em “Manafon”, mas em leituras que desafiam as formas originais, na verdade parecendo mais reflexões (as tais “variações”) do que novas versões. Da presença das cordas (mas evitando a lógica classicista que muitas vezes a sua presença comporta em discos nas periferias da cultura pop) a intervenções de músicos convidados (novamente com percursos talhados nas cercanias do jazz), as “variações” sobre os temas já conhecidos e os originais inéditos revelam um novo aprofundar de ideias que entre texturas, pontuações, sugestões e discretas filigranas de acontecimentos que servem de fundo aparentemente abstracto sobre o qual a voz expressiva e única do cantor trilhava novas rotas (mantendo em tudo firme antigas marcas de personalidade).
Depois desta sucessão de álbuns claramente mais desafiantes, o episódio vocal seguinte na obra de David Sylvian, que dá título a esta caixa, surgiu na forma de um single que quase parecia nascer de heranças diretas dos tempos de “Secrets of The Beehive”. “Do You Love Me Now?” (2013) nasceu de um desafio lançado com vista à colaboração de Sylvian numa instalação. Tal como os demais envolvidos nesse projeto coletivo, o músico usou sons gravados (com o consentimento dos utilizadores) num telefone instalado num centro para sem-abrigo na cidade de Colónia. Dessas gravações cada um dos envolvidos na instalação “My heart’s in my hand, and my hand is pierced, and my hand’s in the bag, and the bag is shut, and my heart is caught” (título que cita Jean Genet) retirou elementos, sons ou palavras, que trabalhou para apresentar, por sua vez, em pequenas cabines telefónicas colocadas no espaço da exposição. Foi neste contexto que nasceu Do You Know Me Now?, que agora surgiu num vinil de dez polegadas que juntava, no lado B, o igualmente magnífico “Where’s Your Gravity”, que foi apresentado em 2012 como inédito no alinhamento da antologia “Victim of Stars”. Este single, juntamente com o EP dos Nine Horses e as três faixas de “World Citizen”, criado com Ryuichi Sakamoto em 2003, representam o CD4 desta caixa.
O alinhamento da seleção de 10 CD que a caixa agora editada nos apresenta junta ainda duas peças experimentais e um outro episódio criado em colaboração. “When Loud Weather Buffeted Naoshima” é na verdade uma composição site specific pedida a David Sylvian pelo Museu de Arte Fukutake de Naoshima, na ilha com o mesmo nome, no Japão. Assim se fez, sendo disco um registo da peça ambiental que David Sylvian ali apresentou e que hoje está apenas disponível para escuta no próprio museu. A peça que se escuta no em disco junta, na mistura, final, não apenas a obra de Sylvian criada para o museu mas também sons da própria ilha, captados pelo músico, procurando assim reproduzir com maior fidelidade o ambiente natural de escuta desta sua obra.. Editado em 2007 o CD foi retirado do catálogo tal como estava previsto.



Por sua vez “There’s a Light That Enters Houses with No Other House in Sight” (2014), a mais recente gravação aqui incluída, é mais uma peça experimental com cerca de uma hora de duração na qual Sylvian usou gravações da voz do poeta Franz Wright e contou com, uma vez mais, Christian Fennez (o mais presente parceiro nesta etapa) e o pianista John Tilbury. O universo das galerias de arte e dos museus na obra se Sylvian tem ainda expressão em “Uncomon Deities” (2102), disco que não é exatamente o registo áudio de uma instalação, mas antes uma consequência direta de um trabalho para o Punkt Festival, um dos mais reconhecidos espaços de encontro de artistas que trabalham segundo métodos de improvisação. Nessa ocasião o Sorlandets Kunstmuseum em Kristiansand (na Noruega) propôs um encontro de formas e ideias que contava com uma instalação criada por David Sylvian. E na noite de abertura poemas de Paal-Helge Haugen e Nils Christian Moe Repstad foram lidos em inglês por David Sylvian, cuja voz (pré-gravada) foi acompanhada pelos músicos John Tilbury, Philip Jeck, e Sidsel Endresen. “Uncomon Deities”, que Sylvian co-assinou com o trompetista Arve Henriksen e a cantora Sidsel Endresen, é por isso uma extensão natural desse momento. Episódio spoken word (com acompanhamento instrumental e vocal dos dois co-autores com quem Sylvian partilha a edição), “Uncomon Deities” é uma coleção de 12 poemas lidos, no qual a voz única de Sylvian confere às palavras um sentido de corpo que a música incidental que as acompanha depois ajuda a materializar.
A caixa antológica agora publicada conta, através desta reunião de discos (sem inéditos, portanto), o percurso que, depois de 2003, abriu novos horizontes e possibilidades para a música de David Sylvian. Esta nova caixa inclui um livro que explora elementos gráficos associados a cada um dos lançamentos aqui evocados, inclui as letras das canções e ainda um texto no qual o próprio David Sylvian dá conta dos acontecimentos que abriram caminho parta esta etapa e como, depois, os vários capítulos deste “volume” foram ganhando forma. Pode, de facto, não haver aqui quaisquer novidades de arquivo. Mas o objeto, assim como o corpo musical da obra aqui reunida, fixam um retrato de uma etapa que, mesmo sem o mediatismo dos tempos dos Japan ou dos primeiros tempos de vida a solo de Sylvian, traduzem momentos marcantes do seu percurso mostrando como, de facto, foi de uma voluntária opção por se afastar dos caminhos dos outros, que nasceu a definitiva afirmação de uma linguagem tão pessoal como fascinante.

“Samahdisound 2003/2014 – Do You Know Me Now? ”, de David Sylvian, é uma caixa de 10 CD + Livro, disponível num lançamento da Universal Music Recordings.
Sem comentários:
Enviar um comentário