
Golpe de estado na Motown. Marvin Gaye exige total controlo artístico sobre a sua obra. O crime compensa. What’s Going On é uma das sete maravilhas do mundo.
Durante os anos sessenta, Marvin Gaye fora o menino bonito da Motown. Mas agora, no virar da década, Marvin sente-se tentado a desobedecer. Dylan e os Beatles tinham há muito derrubado o tabuleiro das boas maneiras pop, mas a Motown continuava a enfiar a cabeça debaixo da areia, como se a contracultura, o Vietname e os motins raciais nunca tivessem acontecido. A própria soul começava a emancipar-se em Memphis e Chicago, com Isaac Hayes e Curtis Mayfield subvertendo as regras da indústria. Era tempo de Gaye fazer o mesmo em Detroit, mandando para o diabo a linha de montagem da Motown. A esse murro na mesa chamou-lhe, apropriadamente, What’s Going On.
O patrão Berry Gordy detestou o álbum, receando que as suas malditas canções de protesto afugentassem o público. Enganou-se redondamente. Captando na perfeição o espírito tumultuoso do seu tempo, What’s Going On foi, à época, o maior êxito da Motown.
O conceito do álbum é tão simples como eficaz: um veterano de guerra regressa a casa e encontra o seu país de pantanas: motins na rua, cargas policiais, heróis assassinados como cães. Para sublinhar este lado conceptual, há uma continuidade estilística entre os temas, a mesma massa de queijo fundido estendendo-se pelo álbum fora.
É um disco que todos gostam, mas por razões diferentes. Os progressistas identificam-se com a denúncia e a indignação. Os místicos adoram a sua cândida espiritualidade. Os românticos babam-se com a sua sensualidade transbordante. De maneira que ficamos confusos com esta música, não sabendo bem se devemos incendiar carros, rezar ou fazer amor junto à lareira.
Se antes Marvin expressava todo o sentimento da soul com uma voz gritada e cheia de grão, agora opta por um registo mais suave e descontraído, usando muitas vezes o seu sensual falsete, e dialogando consigo próprio em múltiplas pistas de gravação. Menos whiskey, mais erva- parece ser a receita para a sua nova e influente voz.
Os músicos que o acompanham são os próprios funk brothers, os míticos homens de sessão que participaram em centenas de discos da Motown. A diferença é que agora Gaye lhes dá carta branca, de maneira que a sua formação sofisticada no jazz moderno pode pela primeira vez esparramar-se à vontade.
A seccão rítmica tem um groove do outro mundo, com um baixo irrequieto sempre ao despique com as mais quentes percussões latinas. O saxofone jazzy é económico mas muito expressivo. Os arranjos orquestrais de cordas e sopros são densos e exuberantes. What’s Going On é um mil-folhas, com camadas sobrepostas de funk, jazz e música clássica. O que é extraordinário é a voz de Gaye nunca ficar soterrada por debaixo de tanta massa folhada. Pelo contrário, sobrepõe-se sempre, como se cantasse à capela. Uma espécie de milagre.
What’s Going On não é apenas o melhor disco lançado pela Motown, nem somente o melhor álbum de soul alguma vez gravado. É muito mais do que isso. É uma daquelas raras obras que ultrapassa os próprios limites do seu género, extravasando para a pura universalidade. Dos pouquíssimos discos com arcaboiço para se medir com os gigantes Revolver, Pet Sounds e Kind of Blue. Deixe-se esmagar por ele.
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