
A década de 90 abre-se com o primeiro “disco maldito” dos Xutos e Pontapés. Gritos Mudos ficou para a História como uma desilusão mas, ouvido agora, permanece forte e urgente.
A década de 80 fechava-se com chave de ouro. Os Xutos surfavam a maior onda da sua carreira, com um triplo mortal bem sucedido: Circo de Feras (87), 88 e Ao Vivo (ambos de 88), os três maiores blockbusters da sua carreira (a juntar ao muitíssimo bem sucedido 7º Single, de 87) e a prova inegável de que, por cá, não havia ninguém maior do que os cinco rapazes.
O que fazer a seguir a todo este sucesso? Nunca seria fácil, sobretudo para uma banda que estava a sofrer ataques dos “intelectuais” do underground, que diziam que os Xutos se tinham vendido ao sucesso, aos tops, à televisão, aos patrocinadores estabelecidos como a Philips e a Sumol. Nas palavras de Paulo Junqueiro, que produziu 88, Ao Vivo e Gritos Mudos: “Lá [no Brasil] como cá o que acontece é isto, uma banda aparece e enquanto mantém o estatuto de banda de culto dizem que é muito gira!, quando começa a vender dizem é uma merda! Então eu começo a pensar para quem é que a gente faz os discos, para os críticos ou para o público?”.
A juntar a esta pressão vinham problemas relacionados com o management, depois da boa e frutífera relação com Vítor Silva ter azedado na altura da gravação do triplo ao vivo no Restelo. É deste tempo a renovação com a Polygram, “um contrato a sério para três anos”, como recorda Tim no livro Conta-me Histórias, de Ana Cristina Ferrão.
O fim de 88, como recorda Zé Pedro, foi agridoce. Apesar de todo o sucesso, a banda estava falida, e teve de despedir praticamente toda a sua equipa fixa. A empresa Xutos & Pontapés tinha sido criada para gerir o dinheiro do patrocínio da Philips, mas sem uma gestão profissional acumulou dívidas e problemas, para além de aventuras que custaram muito dinheiro, como quando trouxeram os Titãs para tocar em Portugal. “Ninguém percebeu bem como, mas estávamos sem um tostão, só durante 89 é que conseguimos pôr as contas em dia, as nossas e os pagamentos às Finanças”, explica Zé Pedro.
A pressão era muita, e os Xutos lidaram com ela da mesma forma de sempre: na estrada, em palco. É esta a altura de, com a ajuda da editora profissionalizada, romperem fronteiras, irem tocar para fora, sobretudo no mercado europeu. Mas o Brasil, que os Xutos já tinham visitado várias vezes, chamava-os. Lá estava Paulo Junqueiro, e era uma forma de a banda se concentrar no trabalho, com entusiasmo renovado. Gritos Mudos, o novo disco, seria gravado no Rio de Janeiro.
O fascínio com o Brasil vinha de trás. Como conta Zé Pedro, no já mencionado livro, “a primeira vez que fomos ao Brasil foi com o Roberto Leal. Nós éramos, na altura, a banda de música moderna mais forte da Polygram e o Tozé Brito propôs-nos. O Roberto Leal, a princípio, ficou um bocado aflito: será que eles não partem nada? Mas explicaram-lhe que nós somos bons rapazes e fomos contratados”. Esta é mais uma marca dos Xutos, a sua falta de sobranceria, a sua humildade e solidariedade, e a vontade de chegar sempre a mais públicos, sobretudo no estrangeiro.
O panorama antes da chegada ao Brasil não era animador, mas uma visita a França ajudou. “Estávamos há muito tempo sem compor e custou muito a arrancar. Em dois anos passámos por muita coisa, tudo a bater, e de repente era um desafio: vamos ter que o fazer!”, conta Zé Pedro. “Já o 88 tinha sido assim, composto ali, no momento – eu e o João a meter guitarras e o Tim de lado com o Kalu a tentar fazer as melodias, ali fechados quase 12 horas por dia, embrenhados naquele som. Por isso não estávamos muito assustados, embora no princípio de Fevereiro ainda nos faltasse quase tudo para o álbum novo. Mas o facto de termos ido a França tocar com os Mano Negra e termos tido sucesso foi como uma adrenalina para a banda”, acrescenta.
O guitarrista continua a relembrar esses tempos: “O Brasil para nós é mágico. Fomos para lá a 3 de Março e voltámos a 25, com tudo pronto”. Paulo Junqueiro, que juntamente com Ramón Galarza produziu o disco, conta que “eles já tinham maquetes de alguns dos temas, outros foram feitos lá”.
Gritos Mudos, editado logo em Abril de 1990, é desde sempre olhado como o primeiro passo em falso dos Xutos, uma espécie de disco falhado. Não vendeu o mesmo que os antecessores, tinha falta de hinos como “Minha Casinha” ou “Contentores”, apesar de algumas músicas muito fortes, como o tema-título. Mas também esse era mais negro, mais escuro, mais tenso.
Essa é, aliás, uma das marcas de Gritos Mudos, apesar da acusação de terem limpo demasiado o som, coisa que o próprio Junqueiro assume, embora lembrando que nunca impôs nada à banda e que tudo sempre foi discutido e consensual.
Na verdade, na nossa opinião, o veredicto de então foi algo injusto para com este disco. É talvez demasiado longo e beneficiasse de uma ou duas músicas a menos (como as dispensáveis “Gente de Merda” ou “Melga”). Mas acaba por ser um álbum bastante coeso e com temas muito fortes: “Gritos Mudos” é um grande single; “OP 53 (O vento)” é um bom exemplo dos velhos tempos dos Xutos de combate, logo a abrir o disco; “Sirenes” é uma pérola pop-rock; “Pêndulo” ou “Futuro que era brilhante” são semi-baladas bem conseguidas; “I love to play” é pura desbunda bem à Xutos.
Ou seja, ouvido à distância de quase trinta anos, não encontramos a razão na música para o falhanço relativo do disco. O motivo será outro: as modas, os ares do tempo, talvez o público mainstream se tivesse pura e simplesmente fartado dos discos dos Xutos, e bastava-lhes o mesmo concerto de hits que até hoje arrasta multidões. Não sabemos.
Sabemos é que, em 2017, Gritos Mudos não ganhou uma ruga e continua um belo disco de rock n roll. Menos orelhudo que os antecessores, eventualmente, mais negro, mais sofrido, mas digno, coeso e muito bem feito.
A História é o que é, e há uns Xutos antes de Gritos Mudos e uns Xutos depois, até porque uma das leis de Newton continua a aplicar-se: tudo o que sobe tem de descer. Mas isso dever-se-á menos à banda e à sua música, e sim aos favores da crítica e do grande público, que todos eles haviam bebido dos Xutos desde pequeninos e estavam, então, a abrir as asas para outros gostos, outras bandas, outras tendências.
Os Xutos, esses, continuaram, como sempre fizeram. E, para além da crítica maldosa, têm em Gritos Mudos mais um disco de que se podem orgulhar, e que merece ser agora revisitado e resgatado para a memória colectiva do rock português.
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