À beira do estrelato que chegaria logo de seguida, os Xutos gravam ao vivo na sua casa, o Rock Rendez Vous. O disco maldito que ficou mais de uma década na gaveta e que mostra todo o poder de palco desta máquina rock.

Gravado num momento crucial da história dos Xutos, em 1986, mas apenas editado no ano 2000, o primeiro disco ao vivo da banda portuguesa devolve-os ao seu habitat natural, os palcos.

A edição do seu segundo disco, Cerco, em Dezembro de 1985, marcara um período de muita luta para a banda. Esses foram os anos da quebra depois do boom do rock português, com muitas editoras a fechar ou a cortar gastos, depois das apostas inconsequentes dos anos anteriores. Depois da edição de Cerco pela independente Dansa do Som, o pior da travessia do deserto já havia passado, mas o grupo ainda não o sabia. Estava excitado com as músicas novas que se amontoavam e com os concertos por todo o país que enchiam facilmente. Estavam à beira de se transformarem em algo verdadeiramente grande.

Os Xutos ficaram algo descontentes com o som de Cerco, pelo que falavam com cada mais insistência na hipótese de gravar um disco ao vivo, no qual se poderia registar toda a sua energia e espontaneidade em cima do palco. Acabou por ser o próprio Rock Rendez Vous a propor a empreitada, que ficou a cargo ainda da Dansa do Som, de Mário Guia, também ligado à mítica sala de espectáculos. A banda andava a ser namorada pela Polygram, mas decidiu, ainda assim, deixar este testemunho a quem os havia apoiado. “Assinámos com a Polygram  no camarim do RRV com a caneta do Mário Guia. Nós conseguimos negociar com a Polygram de forma a permitir a saída do álbum ao vivo no RRV, porque o RRV tinha sido a nossa casa e queríamos deixar esse trabalho de despedida para o Mário Rui”, lembra Zé Pedro em “Conta-me Histórias”, livro de Ana Cristina Ferrão.

O Rock Rendez Vous era, já há muito tempo, o local de eleição para ouvir rock em Lisboa, e funcionava praticamente como uma segunda casa dos Xutos. Como explicou Tim à Blitz, muitos anos mais tarde: “Por um lado para nós aquilo era quase uma sala de ensaios, um sítio onde íamos muitas vezes. Mas por outro lado era um espaço de partilha, de convívio. Era mesmo um clube, um sítio onde as pessoas mais diferentes se encontravam para falar das mesmas coisas”.

Marcaram-se duas datas, 31 de Julho e 1 de Agosto, quinta e sexta-feira, que coincidiam com os concertos de Kinks, em Cascais, e Trovante, no Coliseu. Numa altura em que os concertos eram ainda escassos, isto não era apenas um risco, era um teste. “Falou-se mesmo em cancelar os concertos e transferi-los para a semana seguinte. Eu não concordei e convenci-os a fazer a prova de fogo, a saber se tinham o seu público fiel. Tiveram duas salas completamente cheias”, lembra Mário Guia.

O momento era extraordinário. A formação do quinteto estava estabilizada (Zé Pedro, Tim, Kalu, João Cabeleira e Gui); havia um contrato com uma major a pairar no horizonte; o alforge estava a abarrotar de músicas; e o espectáculo de palco estava mais coeso do que nunca, fruto dos muitos e muitos concertos. A cereja em cima do bolo era ser no RRV, a sua casa, com os seus fãs. Foi, naturalmente, um sucesso.

Toda esta extraordinária energia é absolutamente evidente nos 19 temas de 1º de Agosto no Rock Rendez Vous, do princípio ao fim. Desde a primeira sequência “Som da Frente/Esquadrão da Morte”, assinatura típica de arranque de concertos dos Xutos durante anos, até ao encerramento com o magnífico hino de Verão que é “1º de Agosto”, tudo bate certo no que terão sido noites memoráveis.

Estão aqui temas à altura recentes como “Barcos Gregos”, “Homem do Leme”, “Remar Remar” ou “Conta-me histórias” (a primeira verdadeira canção de amor dos Xutos). Está lá “À minha maneira”, bem como temas emblemáticos do início como “Sémen” ou “Avé Maria”. E está “Casinha”, uma versão que, segundo Tim, “nasceu ali, nas sessões do Rendez Vous. E tornou-se, como se viria a perceber, uma coisa muito grande”. Está lá até “Submissão”, o hino do underdog que era o momento de Zé Pedro torturar os espectadores com a sua voz de cantor.

Tudo isto praticamente sem pausas entre as músicas, sem tempo para respirar, sem abertura para parar. Os Xutos já eram, como são ainda hoje, os verdadeiros animais de palco. Naquelas duas noites do Verão de 1986, a prova era irrefutável.

Mas a história deste “disco maldito” não fica por aqui. Na verdade, o primeiro disco ao vivo “oficial” dos Xutos seria Xutos ao Vivo, de 1988, enquanto este 1º de Agosto no Rock Rendez Vous só veria a luz do dia já em 2000, 14 anos depois da gravação.

Como tantas vezes acontece, houve problemas com as editoras. A Dansa do Som tinha o direito a editar o disco ao vivo, mas a Polygram queria gravar e lançar Circo de Feras rapidamente, no início de 1987. Vítor Silva, na altura manager dos Xutos, explica: “Procurámos garantir a saída do disco ao vivo ainda em 86, mas evitando chegar perto do final do ano, para não chocar com o lançamento do Circo de Feras“. O prazo apertado não foi cumprido, e com Circo de Feras, a estreia pela Polygram, a acontecer em Fevereiro de 1987, o disco ficou guardado mais de uma década na gaveta. O que foi uma pena que hoje em dia está remediada.

O posterior Xutos ao Vivo é talvez mais forte, no sentido em que o alinhamento é ainda mais enriquecido com os hits que os Xutos produziam em massa por esses anos. Mas este 1º de Agosto no Rock Rendez Vous disputa facilmente o título de melhor disco ao vivo dos Xutos & Pontapés, pela energia, pela entrega, pela estupenda electricidade no ar. A História resgatou este disco, e ainda bem que o fez.