Junte um grito contra um país sufocante. Adicione raiva contra uma indústria cobarde. Misture. O brilhante Cerco estará pronto a servir.
Na primeira metade da década de oitenta, os Xutos passaram um mau bocado, sitiados por uma indústria bolorenta que não os queria nem pintados. Tiveram, porém, anjos da guarda que os ampararam em momentos cruciais, mas eram arcanjos maltrapilhos e sonhadores, voando contra o sol e caindo. Aconteceu com António Sérgio, que os produziu no primeiro álbum em 1982, mas cuja independente Rotação faliu pouco depois. Aconteceu de novo em 1984, com a Fundação Atlântica a publicar o single “Remar, Remar” como brilhante canto do cisne.
Depois de tanto remarem contra a corrente, os Xutos estavam outra vez na casa de partida, sem uma editora que os abrigasse. Para sobreviver, fizeram o que sabiam fazer: grandes canções e concertos em qualquer lado, por qualquer cachet. Saiu-lhes do pêlo mas foi assim, e só assim, que conquistaram a sua leal legião de fãs. Eles bem entregaram demos à Valentim de Carvalho, mas a major, cobarde e míope como quase sempre são as majors, nunca teve tomates para arriscar.
Que se dane. O que não mata fortalece. O cerco montado só lhes deu ainda mais ganas para continuar. Prometeram uma coisa a si próprios: que o ano de 1985 não chegaria ao fim sem um novo disco nas lojas. Voltaram-se mais uma vez para o circuito independente, desta feita para os seus velhos amigos do Rock Rendez Vous. O seu braço discográfico, a Dansa do Som, só costumava editar colectâneas ao vivo, mas para os seus Xutos abriria uma excepção.
Não havia dinheiro para alugar um estúdio como deve ser? Não faz mal, um estúdio mais barato bastou-lhes. Para poupar mais uns trocos, gravou-se a bateria na própria sala do Rock Rendez Vous, Kalu tocando sozinho, às cegas, tentando imaginar na cabeça o que os seus compinchas estariam a tocar. O estúdio onde os outros gravaram era de tal forma manhoso que tiveram de captar a voz com o microfone dos pratos, registando assim poucos graves e demasiados agudos. Mas apesar de todos estes constrangimentos técnicos, os Xutos cumpriram a sua promessa: em Dezembro de 1985, o seu segundo LP estava nos escaparates. Cerco era o seu nome. Um cerco de novo rompido com sangue, suor e rock’n’roll.
É o primeiro disco dos Xutos com a sua formação clássica toda reunida. João Cabeleira já havia aparecido no single “Remar, Remar” e na colectânea “Ao vivo no Rock Rendez Vous em 1984”, mas o saxofone de Gui só agora dá os seus primeiros pontapés. A guitarra de Zé Pedro marca o ritmo com a sua lacónica acidez, abrindo espaço para que a guitarra de João Cabeleira ziguezagueie à vontade, rápida como uma nuvem de mosquitos. A bateria bigorna de Kalu rebenta com estrondo, sempre cúmplice do baixo assertivo de Tim. O saxofone de Gui é ainda discreto mas percebe-se já a sua rica expressividade à King Curtis. Quando os cinco magníficos estão finalmente reunidos, a magia acontece.
O Cerco é, para muitos, o melhor álbum dos Xutos. O som pode ser roufenho, com a bateria a soar a tampas de panelas, mas isso dá-lhe um charme ainda maior, uma orgulhosa cicatriz de guerra que denuncia as duras condições em que fora gravado. Nas seis canções, não há um único tiro ao lado, e quatro são clássicos absolutos: “Homem do Leme”, “Conta-me Histórias”, “Barcos Gregos” e “Sexo”.
Cerco é um misto de claustrofobia e explosão: a claustrofobia de um país cinzento que sufoca, a explosão da peça solitária que recusa encaixar. Essa dialéctica não está só nas letras, assoma na própria dinâmica das canções, com os seus ciclos “não respire”, “pode respirar”. O pontapé de saída “Barcos Gregos” vive desses dois tempos, definindo o tom do álbum.
É um disco de raiva, luta e dignidade. A prova de que o estatuto de melhor banda do rock português nunca lhes foi oferecido. Bem pelo contrário. Cada centrímetro do seu território teve de ser conquistado a pulso, contra tudo e contra todos, com gritos como o Cerco. Nós, os fãs, nunca o esqueceremos. Os braços que cruzamos em X são o nosso amor e gratidão.
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