
O punk, já não como regulamento, mas sim como puro espírito.
O punk explode em ‘77 no Reino Unido. Duas bandas lideram o golpe de estado: os niilistas Sex Pistols e os esquerdalhos Clash. Quando os Pistols acabam em Janeiro de ‘78, é sobre os últimos que recai o fardo de manter a chama acesa. A banda de Strummer não desilude, dando ao mundo o seu segundo (e grande) álbum punk: Give’ Em Enough Rope.
Mas o que era antes um saudável movimento de ruptura e inovação, depressa se transformara numa nova ortodoxia. Os moralistas de crista e alfinetes acusam os Clash de se terem vendido, criticando a escolha do produtor americano e apontando o dedo ao seu som mais polido. A reacção fora tão mesquinha que no ano seguinte os Clash decidem fazer um manguito à patética “polícia do punk”, rompendo todas as amarras estéticas numa brilhante reinvenção. A esse magnífico “fodei-vos” deram o nome de London Calling.
Nesta obra-prima, o punk pode desaparecer enquanto cartilha musical mas permanece mais vivo do que nunca enquanto espírito rebelde. A raiva contra a máquina está por todo o lado: na fotografia de capa, com Paul Simonon escavacando o seu baixo contra o palco; nas palavras de Strummer, com as miras bem apontadas ao vazio da sociedade de consumo e à nossa cobarde cumplicidade.
Se nos primeiros anos os Clash pretendiam fazer tábua rasa da tradição rock, chegando mesmo a cantar “no Elvis, Beatles or the Rolling Stones”, London Calling faz justamente o oposto, reconhecendo-se enquanto elo de uma bonita história, e homenageando ternamente os seus antecessores. Daí a sua amálgama de estilos musicais: do rockabilly à soul, da produção barroca à Phil Spector ao jazz. A capa a verde e rosa, numa citação ao icónico primeiro álbum de Elvis, assenta na mesma premissa: o passado, antes inimigo, é agora cúmplice.
Mas não se pense que os Clash se contentam com o mero pastiche. O que é fascinante em London Calling é a margem de reinvenção, com as vozes e guitarras rudes de Strummer e Jones despenteando as formas originais. O exemplo paradigmático é a própria canção-título, onde os seus elementos reggae se tornam quase irreconhecíveis por debaixo da cinza apocalíptica.
Na miríade de sabores musicais de que é feito London Calling, os travos jamaicanos predominam: do rocksteady ao ska, do reggae ao dub. O próprio imaginário das canções é povoado pelos guetos jamaicanos de Londres: o bandido “Jimmy Jazz”; os resistentes de “Guns of Brixton”. Os Clash foram os primeiros a formar esta sagrada aliança entre a tribo punk e a rastafariana, unindo a rebeldia branca e a negra num mesmo combate. Quando em ’77 os boçais skinheads começam a infiltrar-se no movimento punk, os Clash clarificam de imediato a sua posição anti-racista. Ao contrário do demente Sid Vicious, Joe Strummer nunca passeou pela rua com uma suástica na lapela. London Calling é o corolário natural de todo este processo de miscigenação: o disco mais mestiço da Inglaterra dos setenta.
Estamos em pleno pico de criatividade dos Clash, com melodias fortíssimas jorrando umas atrás das outras. Um só disco não consegue albergar tal manancial criativo. O duplo LP surge como solução natural, e a generosidade da banda para com os fãs é tamanha que este é vendido ao preço de um. Dos dezanove temas de London Calling, só a monocórdica “Four Horsemen” é palha; as demais dezoito são todas indispensáveis. Entre elas estão clássicos absolutos como “Spanish Bombs”, “Lost in the Supermarket” e “Train in Vain”. Perdoem-me a heresia mas nem o White Album é um álbum-duplo tão consistente.
London Calling é a válvula de escape que permite a toda uma geração libertar-se do beco sem saída em que se encerrara o punk. Quase quatro décadas depois, permanece como referência inspiradora. Onde houver rock de combate e ternura pela tradição, sabemos que as sirenes de Londres nos convocam outra vez.
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