Para além das pichações em muros hipotéticos há uma música para ser descoberta. O problema é os muros serem mesmo muito altos. Mas que se dê uma oportunidade às Anarchicks.
Desde que as Anarchicks surgiram, no início desta década, que têm sido arredadas de todas e quaisquer discussões acerca da vitalidade da música portuguesa. Dentro da “cena” e fora dela, o nome Anarchicks é, até, visto por muitos com um certo desprezo, quando não mesmo com ódio puro. Há uma determinada intelligentsia que se recusa sequer a dar uma oportunidade ao quarteto, que nos últimos cinco ou seis anos tem editado discos e EPs, tem dado concertos em festivais e não só, e tem tentado fazer com que Portugal acorde para o fenómeno riot grrrl, sendo precisamente essa a sua bandeira.
É também por isso que é muito fácil odiar as Anarchicks. Se é verdade que poucas ou nenhumas bandas formadas por mulheres têm surgido ou causado burburinho em Portugal (com honrosas excepções), levando a que um protótipo que seja de um movimento riot grrrl deva ser valorizado, não é menos verdade que esse rótulo, nas lisboetas, soa despudoradamente falso e desprovido de sentido. O slogan, nas Anarchicks, não é o estandarte de uma revolução por chegar; é uma manobra de marketing construída a pensar na geração Tumblr. Se a música é uma arma elas são o gatilho, diz-se. Até podem perfeitamente sê-lo. Não têm é disparado porra de bala nenhuma.
Porque retiramos a música – e já lá vamos – às Anarchicks e o que resta é uma panóplia de lugares comuns feministas, que mais parecem uma paródia do feminismo em si que uma palavra de ordem genuinamente revolucionária. Phonies, para citar esse grande líder da alienação adolescente, Holden Caulfield, o emo que não sabia que o era. Até pode ser que as Anarchicks acreditem, individualmente, nos valores que apregoam, e tudo indica para que assim seja. O problema é que não os sabem explicar, materializar, preferem esconder-se no vácuo de uma cantilena massificada. Basta ler toda e qualquer entrevista que dêem.
No fundo, as Anarchicks gostariam de ser as Pussy Riot, esquecendo-se que as Pussy Riot não são uma banda. São propaganda. São um grupo de ativistas que se juntaram e se lembraram que tinham escondidas, algures no sótão dos pais, um par de guitarras e um kit de bateria. Daí colocarem uma ênfase muito maior nessa mesma propaganda, como seres unidimensionais: nós somos as Anarchicks e para além disto não somos mais nada. Reparem na inteligência do nosso nome, Anarquia + Raparigas, e de pronto nos esquecemos que elas, na verdade, até fazem música, porque fomos engolidos por tudo o resto.
Mas foquemo-nos, isso sim, na música: demasiado inofensiva para ser uma ofensiva contra o patriarcado, suficientemente bem tocada para que, não fosse toda a bagagem riot chic que elas enfiaram no avião, se pudesse dizer que as Anarchicks fazem parte, sim, dessa coisa que é a vitalidade da música tuga. Afinal de contas, não é todos os dias que surge em Portugal uma banda formada por quatro mulheres que toca rock n’ roll dançável seguindo a cartilha das Au Pairs e das Delta 5, grupos que foram riot grrrl antes das Bikini Kill tocarem sequer um acorde. E isso está patente, também, em Vive La Ressonance, EP editado este ano.
Vive La Ressonance é um conjunto de cinco faixas onde as três primeiras em nada ficam atrás das grandes coqueluches da imprensa nacional e seus derivados internéticos: um baixo proeminente aponta às ancas, as guitarras vão rebentando aqui e ali e, acima de tudo, há ruock – a faísca de algo que não sabemos o que é mas que esperamos que se torne incêndio. Isso está bem patente em “Rebus”, e alastra para “Out Of Time” (exemplo de como o rock pode ser simultaneamente bom e radiofónico) e para “Black Box”, ginga pós-punk a relembrar os bons velhos tempos da Nova Iorque do início do milénio.
Há tropeções, claro: uma versão muito mal amanhada de “Helter Skelter”, clássico dos Beatles que mais parece ter sido incluída para conferir, ao EP e às Anarchicks, uma certa aura de “credibilidade”, e a aberração que dá pelo nome de “Imortais”, onde todo o mal que se apontou anteriormente ao grupo toma a forma de um electro-punk-chachada, com vocais que mais parecem saídos de um anúncio do Canal Panda e versos pseudo-arma que fariam com que até Valerie Solanas virasse dona de casa e militante do CDS-PP. A conclusão lógica: as Anarchicks deveriam limitar-se a fazer música. A conclusão sensata: se é para fazer do feminismo uma bandeira, então não se limitem a comprá-la nos chineses. Caso contrário, arriscam-se a que o pagode se sobreponha à seriedade.
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