Luzes, sopros dissonantes, guitarra e adeus Dylan.
Logo ao primeiro minuto de The E Street Shuffle, Bruce Springsteen mostra que a qualidade do seu primeiro disco não foi um feliz acaso. Springsteen decidiu lançar-se ao mundo com uma jogada à la Zeppelin: para não haver tempo de o seu nome ser esquecido, num ano lança duas obras-primas. Em Janeiro de 1973 o miúdo de Jersey editou Greetings form Asbury Park, N.J. e em Setembro, enquanto o seu álbum ainda rodava nos gira-discos e nas rádios, editou o magnífico The Wild, The Innocent & the E Street Shuffle.
Este novo registo mostra uma nova faceta de Springsteen, com um claro distanciamento relativamente ao que tinha sido o seu primeiro álbum. Se em Greetings form Asbury Park, N.J. havia um (grande) quê de Dylan, essa influência esbatia-se neste segundo disco, onde Springsteen procurava a sua voz. O músico de Jersey continuava a ser inspirado pelo autor de “Like a Rolling Stone”, mas incorreu também pelas sonoridades do jazz, do funk e do rock, numa viagem sempre à boleia da incrível E Street Band. A banda de Springsteen mostra nestas sete canções uma competência e versatilidade únicas, desdobrando-se uma e outra vez, para melhor acomodarem a poesia cantada de Springsteen.
E que bem que soa essa poesia naquela voz jovem e esperançosa de Bruce, uma juvenilidade e esperança que dariam lugar a uma dureza e realidade a partir de Born to Run. Neste conjunto de sete canções, Springsteen optou por ensaiar dois tipos distintos de composição: num espectro está a narrativa na terceira pessoa dos problemas que assolavam a jovem working class americana – um tema que iria marcar o resto da sua carreira – e do outro lado a narrativa pessoal, onde Bruce retrata a vida de um jovem de New Jersey que vai cultivando paixões pela cidade, ou que procura encontrar a sua identidade nas ruas de New York.
A bipolaridade de narração em Springsteen é acompanhada pela duplicidade de temas que se espraiam pelo disco. De um lado os temas festivos, com grandes fanfarras de sopros e pianadas boogie-woogie e do outro lado as músicas introspectivas encaminhadas pelas guitarras e pela subtileza das teclas do piano.
Se “Kitty’s Back” é um blues directo e uma palete em branco para a banda mostrar a sua virtuosidade, “The E Street Shuffle” é a canção mais irrequieta de todo o disco, com uma introdução de sopros e uma guitarra carregada de funk. O álbum conta ainda com bamboleio divertido de tuba em “Wild Billy’s Circus Story” que faz lembrar uma marcha de desenho animado, em que a personagem principal parece um mamute mal-disposto. Para esta canção, Bruce Springsteen pede emprestada a Dylan a sua narrativa sobre “Desolation Row” e cria esta canção sobre quando o circo chegava à cidade de New Jersey e como as suas maravilhas atraíam um jovem confuso que não sabe o que há-de fazer na sua vida. O bom e velho Tom Waits afirma que a história de Wild Billy é a sua canção favorita de Springsteen.
O disco tem uma pequena trilogia sem qualquer ligação, sem ser a personagem principal. “4 th July, Asbury Park (Sandy)”, “Incident on 57 th Street” e “Rosalita (Come Out Tonight)” são três canções sobre jovens apaixonados que têm uma atitude de “West Side Story”: rebeldes e independentes que se perdem de amores por uma rapariga que não pertence ao seu mundo.
“Incident on 57 th Street” é uma história de amor que se adivinha passada nos anos 50, num filme a preto e branco. ‘Spanish’ Johnny é um Romeu moderno: um gangster que se passeia nas ruas, por becos e vielas de má fama, à procura de entregar o seu coração a uma mulher que o aceite. E quem aceita receber o seu coração é ‘Puerto Rico’ Jane, uma jovem que consegue acalmar o trovão dentro do jovem delinquente, através de amor. A vida passa, Johnny acalma os seus impulsos, eles amam-se e dormem juntos,
partilhando até a almofada. Mas Johnny não aguenta esta vida, tem de sair, de lutar, de voltar às suas raízes. E numa noite, o combate chama-o de volta para a vida de gangster, mas o ‘Spanish’ não vai abandonar para sempre a sua Jane, sossega-a e faz-lhe uma jura de amor: “Good night, it’s all tight Jane/ I’ll meet you tomorrow night on Lover’s Lane.” Toda a canção é pontuada por uma ternura evocada pela melodia de piano e pelos coros femininos, ao mesmo tempo que a bateria anuncia um fim abrupto.
“Rosalita (Come Out Tonight)” conta a história de um adolescente que tenta tornar a jovem e inocente Rosie numa rebelde. Em troca dessa promessa de vida aventureira, o narrador apenas precisa da sua “soft sweet little girl’s tongue”. Bruce tenta seduzir Rosie com promessa de festas, diversão e uma vida despreocupada, que ganha ainda mais força pelo tom animado e acelerado da canção que cria grandes orquestrações, nos momentos instrumentais, mas que deixa o final em aberto. Será que Rosie cedeu à
tentação?
A última canção do disco é “New York City Serenade”, uma canção de amor à suja, perigosa e maravilhosa cidade de Woody Allen – talvez no monólogo inicial de Manhattan o realizador pudesse ter usado esta letra para demonstrar o seu sentimento repulsivo e apaixonado pela cidade. Billy, é um jovem que saboreia os prazeres da noite que a cidade tem para lhe oferecer, desde prostitutas, ao medo, a substâncias recreativas e por fim, a noite acaba com nota de beleza, quando Billy ouve o “jazzman” a fechar a noite. “He’s singing, he’s singing, he’s singing”. E o homem vai cantando, embalado pelo saxofone de Clarence Clemons e pela voz de Springsteen, noite fora. E o cortejo pelas ruas de New York segue com Billy, Diamond Jackie, Rosie, Kitty, ‘Porto Rico’ Jane, ‘Spanish’ Johnny, Wild Billy, Bruce Springsteen, a E Street Band e todos os que ouvem a serenata de um jovem de 25 anos à gigantesca cidade que nunca dorme.

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