Num tempo em que o panorama da canção pop se mostra dominado por canções criadas para afagar aos ímpetos dos algoritmos, servindo fartas doses de mais do mesmo, as exceções (raras, mas valentes) mostram que este pode ainda ser um terreno onde, como a história sempre demonstrou, o melhor pode acontecer. Da excelência da afirmação de visão e personalidade de um “Hit Me Hard and Soft” de Billie Eilish à ousadia que Madonna convocou para o seu mais recente “Madame X”, isto sem desmerecer o brilho polido mas eficaz com que Kylie Minogue nos deu uma canção irresistível como “Padam Padam”, Beyoncé convocou heranças da cultura house em “Renaissence” ou a veterania sagaz dos Pet Shop Boys chamou grandes canções a “Nonetheless”, a pop dos (novos) anos 20 já colheu suficientes episódios claramente acima da mediania reinante. E eis senão quando, após uma sucessão de experiências noutros trilhos (do jazz ao cinema), eis que a figura maior que a pop viu nascer na primeira década do século regressa com um disco a inscrever no panteão onde moram os demais acima citados. E com aquele que é o seu melhor álbum em largos anos.
A rara adaptabilidade de Lady Gaga a territórios tão distintos como os que percorreu depois do trio inicial de álbuns – “The Fame” (2008), o complemento direto “The Fame Monster” (2009) e “Born This Way” (2011) – deu conta de uma capacidade em cruzar desafios, juntando ora ímpetos mais exploratórios (“Art Pop”, 2013) ora mergulhos por memórias clássicas (“Cheek to Cheek”, ao lado de Tony Benett, em 2014, tal como em “Love For Sale”, de 2021). Nos últimos anos, e depois do mais discreto “Joanne” (2016) o cinema assumiu um papel com algum protagonismo, chegando até a ofuscar “Chromatica” (2020). Porém, apesar do sucesso considerável de “The Star Is Born” (2018) e de ter entregue uma canção ao segundo “Top Gun” em 2022, foi com uma experiência desastrosa nas bilheteiras que emergiram premeiros sinais de saudável inquietude que, não imaginávamos ainda, preparavam caminho para “Mayhem”. Se por um lado a crítica e as salas sovaram “Joker – Folie à Deux”, por outro o filme deu a Lady Gaga uma nova oportunidade para trabalhar um repertório clássico, mostrando o belo “Harlequin” (2024) que, ao classicismo de “Cheek To Cheek”, o seu novo episódio de reencontro com velhos songbooks se fazia num laboratório em maior ebulição de ideias, cheio de contrastes e surpresas. Se tivermos em conta que as canções de “Mayhem” começaram a ganhar forma já na reta final da “Chromatica Ball Tour”, ou seja, contemporâneas da criação das versões que depois ficaram fixadas em “Harlequin”, então podemos supor que um mesmo adubo criativo estava a animar uma autora a atravessar uma etapa de reencontro com um pico de forma. E se houvesse dúvidas basta uma simples primeira audição do novo disco para ter respostas. Sim. Está de volta ao seu melhor. E à melhor pop do presente.

Se entre “The Fame” e “The Fame Monster” Lady Gaga definiu as bases de uma linguagem criativa e uma identidade autoral (firmada num corpo sólido de temáticas e causas), já em “Born This Way” mostrou que a construção do seu presente assentava sobre alicerces conhecedores da história da cultura pop, algo que, depois do mais experimental “Art Pop”, retomaria em “Joanne”. O novo “Mayhem” junta esses mundos. Ou seja, retoma a visão pop (baseada numa escrita cuidada e numa entrega vocal poderosa) dos tempos de “Poker Face”, “Love Games” ou “Bad Romance” e assimila temperos que vincam vivências atuais (luminosas e felizes) e memórias colhidas entre ícones maiores da cultura pop. E aqui tanto podemos falar da presença de um funk de músculo eletrónico que evoca Prince em “Killah” ao electro disco de “Zombieboy”, do apelo pop dançável de um Michael Jackson (anos 80) no refrão de “Shadow of a Man” ao sabor dos teclados analógicos que lembram os Yazoo em “How Bad Do You Want Me”. Em “Love Drug” Lady Gaga retoma os trilhos AOR (de Adult Orientated Rock) dos dias de “Joanne”. “Don’t Call The Night” transpira a ecos electro. Podemos juntar ainda pistas colhidas no grande livro pop/rock alternativo como os Siouxsie & The Banshees (samplados no soberbo “Abracadabra”) ou The Cure (a fonte de inspiração para “Perfect Celebrity”). E anda por aqui, por todo o disco, uma discípula de Bowie…
A todo este cocktail de referências responde a solidez da escrita, uma produção exigente e a voz que no fim tudo une em canções que retomam temáticas que vão do plano das emoções a reflexões sobre a celebridade. Com aperitivo no promissor “Disease” e, depois, o assombroso “Abracadabra” (canção para somar ao Top 5 das melhores de Lady Gaga), o álbum tem tudo para devolver a sua autora à linha da frente do panorama da música pop. Pode ser verdade que o sucesso global do dueto com Bruno Mars “Die With a Smile” ajudou a lançar boas fundações para este renascimento. Mas, mesmo colocado no final do alinhamento, a canção destoa. Os Duran Duran deixaram “Is There Something I Should Know?” (1983) fora do alinhamento do álbum quer editaram nesse mesmo ano. Os New Order nunca pensaram “Blue Monday” senão como single. E estas eram pistas igualmente clássicas que “Mayhem” também poderia ter seguido.








