O ano de 1970 foi um dos anos mais mágicos para a história da música, diversos discos que entraram para listas de melhores e mais importantes foram lançados neste ano. Com tantos lançamentos marcantes, diversos discos tão bons quanto esses ficam de lado e raramente recebem o devido valor. Começando hoje, já que comemoramos 52 anos do lançamento de ”Magic Christian Music”, a estréia da grande banda Badfinger.
Com fortes influências dos Beatles, o Badfinger emendou uma boa sequências de discos muito bons, e sua estréia ”Magic Cristian Music” talvez seja o melhor trabalho da banda. Aqui a ideia inicial era produzir uma trilha sonora para um filme que levaria o mesmo nome do álbum, mas depois de pronto, a gravadora resolveu incluir mais faixas inéditas e fechar um disco mais coeso e de carreira para a banda.
O álbum abre com ”Come And Get It”, um desavizado poderia pensar que é uma música dos Beatles, toda a levada e harmonias vocais remetem aos garotos de Liverpool. Certamente essa influência na sonoridade se deve ao fato da produção contar com Paul Mccartney, além de Mal Evans e Tony Visconti. A música que merece o maior destaque em ”Magic Cristian Music” é ”Dear Angie”, uma balada perfeita, com apenas 2min e 41seg a faixa traduz toda a beleza e leveza do disco, uma verdadeira composição da alma. Já ”Rock Of All Ages”, talvez a faixa mais enérgica do disco, poderia estar no álbum branco dos Beatles na voz de Paul Mccarntey, é fantástico.
”Magic Cristian Music” é uma belo retrato da transição que a música pop e o rock estava passando na virada da década de 60 para 70. É um disco fantástico, desde sua bela e diferente capa, até cada uma de suas faixas, e além de tudo foi uma estréia com o pé direito para uma banda que acabou ficando com uma imagem diminuta no decorrer dos anos. Fica aqui nossa homenagem nos 52 anos desse lindo registro.
Nove anos após o lançamento do ótimo “The Book of Souls” (2015), o Iron Maiden retorna com “Senjutsu” – décimo sétimo álbum gravado em estúdio pela banda, o segundo em formato duplo. O título do trabalho é uma expressão japonesa que significa “tática” ou “estratégia”.
O disco foi gravado na França há aproximadamente dois anos, permanecendo engavetado a sete chaves durante todo esse tempo. A produção novamente ficou a cargo de Kevin Shirley, parceiro do grupo desde “Brave New World” (2000).
O primeiro single de divulgação, lançado em julho deste ano, foi “The Writing on the Wall”, faixa que ganhou um videoclipe muito bacana feito em animação. A segunda música apresentada ao público foi “Stratego”, lançada em 19 de agosto. Ambas as faixas já prenunciavam que vinha coisa boa no horizonte e empolgaram os fãs da “Donzela de Ferro”.
“Senjutsu” apresenta a competência instrumental de sempre do Maiden, com riffs e solos de guitarra inspirados tocados pelo trio de guitarristas, linhas de contrabaixo marcantes, batidas e viradas de bateria precisas e o vocal diferenciado de Bruce Dickinson. As canções estão mais cadenciadas e repletas de passagens instrumentais que remetem ao rock progressivo praticado pelas bandas britânicas da década de 70. Aliás, algo que sempre esteve impregnado no DNA musical do sexteto, mas que nos últimos trabalhos vem ganhando uma maior ênfase.
Em termos de composição, quem dá as cartas é o baixista Steve Harris. Das dez faixas presentes em “Senjutsu”, sete foram compostas por ele (quatro delas sozinho, uma em parceria com o guitarrista Adrian Smith e duas com o guitarrista Janick Gers). O vocalista Bruce Dickinson figura em três faixas dividindo os créditos com Smith. O guitarrista Dave Murray e o baterista Nicko McBrain não receberam créditos por nenhuma das canções do álbum.
A abertura do disco um fica por conta de “Senjutsu”, uma canção pesada que traz uma interpretação dramática de Bruce Dickinson. “Stratego” vem a seguir com um andamento mais acelerado, apresentando ao público a sonoridade típica da banda, pontuada pelas linhas de contrabaixo galopadas de Harris. “The Writing On The Wall” é um blues-rock épico com toques folk à la Jethro Tull. “Lost In a Lost World” começa com uma levada acústica que culmina numa explosão de riffs e solos de guitarra. “Day of the Future Past” é um rock mais convencional que funcionará bem nas apresentações ao vivo da banda, enquanto “The Time Machine” apresenta inesperadas mudanças rítmicas e solos “cantáveis”.
O segundo disco começa com “Darkest Hour”, uma canção mais lenta e reflexiva cuja temática remete à Segunda Guerra Mundial. Violões e teclados conferem um ar folk a “Death of the Celts”. “The Parchment” é um épico prog sombrio com muito peso e melodia. “Hell on Earth” encerra a viagem de maneira grandiosa em tons proféticos: “On the other side, I’ll see you again in heaven/ Far away from this hell on Earth” (“Por outro lado, vejo você novamente no paraíso, longe deste inferno na Terra”).
Em “Senjutsu” o Iron Maiden demonstra que soube envelhecer com dignidade e entrega aos fãs o que sabe fazer de melhor: criar canções que misturam peso, melodia e intensidade. Mais um excelente trabalho de uma das maiores e mais queridas bandas de heavy metal da história.
“O Bicho Tá Pegando” é o disco de estreia da carreira solo do experiente guitarrista Billy Brandão. Com mais de 30 anos de estrada, ao longo desse tempo ele acompanhou artistas de destaque da música brasileira, nomes como Frejat, Erasmo Carlos, Marisa Monte, Paulinho Moska, Orlando Morais, Ana Carolina e Lobão.
O álbum começou a ser concebido em 2018 quando Billy arregimentou alguns amigos de peso para realizar sessões no estúdio Du Brou, de propriedade do guitarrista e vocalista Roberto Frejat (ex-Barão Vermelho). Participam do projeto músicos tarimbados como Alexandre Katatau (contrabaixo), Lourenço Monteiro (bateria), Eduardo Lyra (percussão), Marlon Sette (trombone), Diogo Gomes (trumpete), Zé Carlos “Bigorna” (sax tenor) e Guilherme Schwab (pedal steel).
A bolachinha é composta de dez faixas instrumentais, cuja sonoridade predominante é o jazz rock. É possível perceber as referências musicais que impregnaram o DNA musical de Billy no decorrer de sua trajetória pelas seis cordas (Jeff Beck, Carlos Santana, Frank Zappa, Adrian Belew, Chick Corea, Lanny Gordin, Pepeu Gomes e Hermeto Pascoal), mas nada aqui soa como uma simples cópia. A guitarra é posta a serviço da música, não como mero veículo para exibicionismos e firulas desnecessárias.
O primeiro single apresentado ao público foi “Par ou Ímpar”, faixa que ganhou um videoclipe bastante descontraído dirigido por Raphael Hollanda.
Dentre as faixas, destacam-se os grooves de “Acesso ao Camarim” e “Par ou ímpar”, as blueseiras “Pé de Chumbo” e “Invisível Costura” e as frenéticas “O Bicho Tá Pegando” e “Mnemônica”, que possuem solos de guitarra incendiários. Outro ponto que merece menção é a cozinha afiada composta pelo baixista Katatau e pelo batera Lourenço, cujo entrosamento é exemplar.
Logo em seu primeiro trabalho solo, Billy Brandão apresenta ao ouvinte um álbum espontâneo e repleto de suingue, que passa longe da chatice modorrenta que por vezes permeia os discos instrumentais lançados por alguns guitarristas de rock. Vale a pena conferir! (Por Álvaro Silva)
FICHA TÉCNICA
Artista: Billy Brandão
Álbum: O Bicho Tá Pegando
Gravadora: Independente
Produtor: Billy Brandão
Duração: 47m00s
Faixas:
01. Acesso ao Camarim (Billy Brandão)
02. Par ou ímpar (Billy Brandão)
03. Pé de Chumbo (Billy Brandão)
04. Se Ela Quiser (Billy Brandão)
05. Bends and Friends (Billy Brandão)
06. O Bicho Tá Pegando (Billy Brandão)
07. Mnemônica (Billy Brandão)
08. Silente (Billy Brandão)
09. Invisível Costura (Billy Brandão)
10. She’s Leaving Home (Lennon/McCartney) (Bônus track)
No dia 29 de julho de 2021, a editora Belas Letras lançou mais um livro impactante para os fãs de rock’n’roll e música em geral, trata-se de Red: Minha Vida no Rock Sem Censuras, autobiografia do cantor, guitarrista, compositor e empresário Sammy Hagar, vulgo “The Red Rocker”, músico com passagens pelo Montrose, Van Halen, Chickenfoot e atual The Circle. O livro foi escrito em parceria com o jornalista e crítico musical Joel Selvin, autor de diversos livros e de vários artigos publicados nas revistas Rolling Stone e Bilboard.
Hagar apresenta um relato sincero relembrando acontecimentos de sua infância – em especial o relacionamento conturbado com o pai alcoólatra -, o surgimento de sua paixão pela música ao ouvir artistas e bandas como Elvis Presley, The Beatles e Rolling Stones, a parceria com o experiente guitarrista Ronnie Montrose, a perseverança para alcançar o sucesso como artista solo, além de falar sobre casamentos, bastidores do mundo do rock e a carreira multimilionária que desenvolveu como fabricante de uma premiada marca de tequila.
Apesar de toda a história de Hagar ser muito interessante e inspiradora, a parte que mais chama atenção é sua marcante passagem pelo Van Halen, que acabou rendendo quatro álbuns de estúdio, um disco ao vivo e sucessos como “Why Can’t This Be Love”, “Dreams”, “When It’s Love”, “Poundcake”, “Right Now” e “Can’t Stop Loving You”. O “Red Rocker” apresenta sua versão dos fatos contando detalhadamente os bastidores das turnês da banda – marcados por bebedeiras, drogas, orgias homéricas, problemas com o empresário e os desentendimentos com os irmãos Eddie e Alex Van Halen, que acabaram culminando com sua saída da banda em 1996.
Como o livro foi lançado originalmente em 2011, detalhes sobre os acontecimentos vivenciados por Hagar desde então não fazem parte das memórias. Entretanto, esse fato não compromete a leitura de modo algum.
Red: Minha Vida no Rock Sem Censuras é um livro essencial não apenas para os fãs do Van Halen, mas também para quem quer conhecer a história de um dos principais vocalistas do rock americano.
FICHA TÉCNICA
Título: Red: Minha Vida no Rock Sem Censuras
Autor: Sammy Hagar com Joel Selvin
Editora: Belas Letras
Lançamento no Brasil: 29 de julho de 2021
Páginas: 302
OUÇA SAMMY HAGAR
Não conhece muita coisa a respeito de Sammy Hagar além dos hits que ele gravou com o Van Halen? Pois bem! Indicaremos a seguir alguns álbuns excelentes gravados por ele para você ouvir. Vamos lá:
Das cinzas de um projecto falhado, nasce o despretensioso Who’s Next, tão imaginativo como Tommy e Quadrophenia mas sem o seu peso conceptual. O favorito dos fãs menos virados para as óperas rock.
Na sua fase inicial (mod, feedback e anfetaminas), os Who são uma banda de singles. “My Generation”, “I Can’t Explain” e “Substitute” são alguns dos deliciosos 45 rotações com os quais a Swinging London se enfeita (três minutos bastam para fazer um homem feliz). Na corrida de fundo dos LPs, o caso muda de figura: My Generation (1965) e A Quick One (1966) terão os seus encantos mas não são Rubber Soul ou Revolver, longe disso.
Em 1967, cansados da estreiteza do formato single, fazem o seu primeiro grande álbum (e primeiro disco conceptual). Falamos do psicadélico The Who Sells Out, embrulhado como se fosse um programa de rádio, com jingles publicitários entre as canções e falsos reclames na própria capa (uma terna homenagem à magia das rádios piratas). The Who Sells Out é um triunfo estético mas um flop comercial. Ainda não é desta que conseguem pagar as despesas das guitarras destruídas em palco…
Se um disco conceptual, por si, não é suficiente para conquistar o público, Townshend avança para o trunfo seguinte: inventa a ópera rock. Na mouche: Tommy (1969) é um sucesso retumbante, extravasando o próprio nicho da música pop (fãs menos informados dizem amar os Tommy e o seu disco “The Who”). Mais importante, entram no cobiçado mercado americano. Agora, sim, ascendem à primeira divisão das maiores bandas de rock do mundo (só os Stones e os recém-chegados Zeppelin lhes farão verdadeira concorrência).
O sucesso não faz, porém, bem ao discernimento de Pete Townshend. Não achando Tommy suficientemente grandioso, quer fazer o ainda mais monumental Lifehouse, um conceito multimédia de tal forma abstruso que ninguém percebeu patavina. Exasperado pelo sentimento de incompreensão, Pete colapsa mentalmente (chegou a alucinar com homens-sapo, tentando fugir pela janela!). Chegado a esta situação-limite, Townshend desiste da megalomania de Lifehouse. O produtor Glyn Johns persuade-o, porém, a não deitar o bebé fora juntamente com a água do banho. Escolhendo apenas o lote mais inspirado das canções, transformou-se um álbum-duplo conceptual que ninguém entendia num único – e belíssimo – disco não narrativo. Who’s Next, portanto.
O curioso é que das cinzas de um projecto falhado nasce aquele que muitos consideram ser a obra-prima dos Who. Tommy e Quadrophenia também são incríveis mas a sua natureza operática ofende as sensibilidades mais despretensiosas. Who’s Next tem a mesma imaginação melódica mas ganha pontos pela sua abordagem menos teatral.
Who’s Next foi um dos primeiros discos pop a experimentar à bruta com a electrónica (Music of My Mind de Stevie Wonder só chegaria no ano seguinte). O hipnótico sintetizador com que o disco abre – um arpejo obsessivo e cintilante – é de um futurismo estranhíssimo para a época (os Kraftwerk ouviriam “Baba O’ Riley” em repeat, suspeitamos). Townshend intui, de imediato, a essência da música electrónica: não é para trabalhar melodias que se recorre à maquinaria de ponta mas para gerar novas texturas e ambiências, o som pelo poder físico do som. O seu mestre avant-garde Terry Riley, homenageado no título da canção de abertura, conseguira passar o testemunho.
Who’s Next pode não ter um conceito unificador mas um tema pulsa debaixo de algumas canções: a morte dos sixties. Não há propriamente amargura porque Pete Townshend nunca esteve iludido: o idealismo das flores no cabelo sempre lhe pareceu pueril. A má experiência com LSD certamente não ajudou: no regresso a casa pós-Monterey, Pete tem uma bad trip durante a viagem de avião (a hospedeira de bordo transforma-se num porco e em angústia da morte!) Quando em ’69 vão tocar a Woodstock odeiam a experiência: horas à espera no trânsito e no backstage, chá contaminado com ácidos (triparás, quer queiras, quer não), um activista interrompendo a actuação com uma declaração política, Townshend usando a sua guitarra-baioneta para o expulsar do palco, um público embrutecido pelo LSD aplaudindo tudo só porque sim. Quando em “Baba O’Riley” desabafam “it’s only teenage wasteland, they’re all wasted”, descrevem Woodstock não como o paraíso na terra das hagiografias mas como um imenso lamaçal de adolescentes fritos pela drogaria.
No tema que encerra o álbum, “Won’t Get Fooled Again”, a catarse ainda é mais sofrida: os sintetizadores robóticos vão acumulando tensão até Daltrey extravasar todo o desencanto de uma geração num imenso grito de raiva e de dor. Sobram depois os versos amargos “o novo patrão é igual ao novo patrão”, a contracultura dos sixties como um orwelliano triunfo dos porcos.
A balada épica “The Song is Over” – em teoria, uma canção de amor – adquire neste contexto um significado diferente: os sonhadores anos 60 morreram, paz à sua alma. A icónica capa do disco, onde um monolito à 2001 é usado como urinol, tem a mesma ambiguidade: statement contra o cinzentismo do mainstream ou crítica às contradições da própria contracultura?
Apesar de tudo, o corte de Townshend com os sixties não foi total. Como muitos da sua geração, Pete transitou do LSD para a espiritualidade oriental (o rock elevando os espíritos enquanto culto congregador). Esse sentido aguçado de transcendência atravessa Who’s Next.
Pete Townshend, o cérebro criativo por detrás da máquina Who, compôs todos os temas do disco com excepção de “My Wife”, escrito por John Entwistle. Se a voz do baixista é menos carismática, o humor da letra é delicioso: “murdered in cold blood is what I’m gonna be / I ain’t been home since friday night / And now my wife is coming after me”.
Em Who’s Next os quatro magníficos estão no topo da sua forma. O chanfrado baterista Keith Moon recusa-se à vulgaridade de marcar o ritmo, solando permanentemente com a sua selvagem espontaneidade. John Entwistle, discreto em temperamento, nutre o mesmo desprezo pelo metrónomo, tecendo inventivas contra-melodias (o baixista mais virtuoso da sua geração). Com uma secção rítmica tão insubordinada, não resta outra opção a Townshend se não preencher esse vazio, assinalando o tempo com os seus violentos power chords (quando também Pete ousa solar só uma cumplicidade musical invulgar impede a banda de cair no caos total).
Roger Daltrey é um intérprete cada vez mais refinado, conseguindo encarnar as pessoalíssimas canções de Townshend com uma surpreendente autenticidade. Na balada “Behind Blue Eyes” (a melodia mais bonita dos Who, morte aos Limp Bizkit pela profanação), Daltrey revela uma inesperada subtileza expressiva: vulnerável nos versos iniciais, acusador em “and I blame you”. Muitos temas são cantados também por Pete, enriquecendo-as com o contraste dos timbres (a voz de Daltrey: espessa e áspera; a voz de Townshend: doce e frágil).
Se a programação de sintetizadores é modernista para a época, temas como “Love Ain’t For Keeping” e “Going Mobile” têm uma toada quase country. É essa tensão permanente entre contrários que engrandece Who’s Next: experimental e revivalista, roqueiro e delicado, cínico e místico. Bem-vindos aos estranhos anos setenta, parecem-nos dizer…
O segundo rebento de Mãeana chega com a mesma dose de encantamento do seu primeiro momento de maternidade. Resta-nos recebê-lo de braços abertos.
Ana Cláudia Lomelino é um dos mais bonitos segredos da música popular brasileira. No entanto, há já mais de uma década que se faz ouvir no seu país e também um pouco pelo mundo, primeiramente como a voz da banda Tono, depois através da sua persona Mãeana, que já nestas páginas mereceu bom e significativo destaque. A razão é simples: Ana Cláudia Lomelino é portadora de uma voz que facilmente nos cativa e hipnotiza, e como se tal predicado não bastasse, é também criadora de um universo artístico muito particular. Único, até. Há que dizê-lo. Este seu projeto musical encerra uma idiossincrática visão do mundo, mesclando transcendência e realidade, colorindo tudo o que faz com rasgos de um certo psicadelismo tropical temperado com doces efeitos sonoros, serenos, quase ataráxicos. O seu disco de estreia (Mãeana, 2015) foi um autêntico triunfo da serenidade e do extremo bom gosto artístico. Os astros estiveram a seu favor nesse abençoado primeiro conjunto de canções. Agora, passados quase seis anos, todas as entidades celestes foram de novo convocadas e repetiu-se a grandeza das coisas sonoras e místicas. As portas do seu Olímpo feminino estão de novo abertas, e é imprescindível entrar.
Os tambores e atabaques em honra de Oxum abençoam Mãeana 2 logo nos instantes iniciais. E quando a sua voz canta “dou flor em tudo, dou flor em tudo”, surge-nos à ideia o imaginário da Carta fundadora do país irmão, pois parece que com Mãeana, “em se plantando tudo dá”, e de forma abundante e rica. São catorze os temas que se escutam nesta sua segunda entrega de originais. Assim, o disco continua com um tema surpreendente de swing e charme (“Vida Interior”), lançando o repto ao afirmar que “dizem por aí que no espaço sideral há sinal de vida interior / e é pra lá que eu vou”. Um dos melhores momentos do álbum, sem dúvida. Enorme e prazenteira levada que não deixará ninguém indiferente. Como mãe a tempo inteiro (assim como inteira se dará a tantas outras coisas da vida), os temas “Tudo Dom” e “Sê Rei” homenageiam os dois filhos que tem com Bem Gil, filho do grande mestre tropicalista Gilberto Gil. O primeiro dos dois temas é quase um rock à maneira dos Beach Boys, o segundo é meio bossa – meio samba, “um sentimento de paz e assombro”. Delicadeza, paz, serenidade. Essas são, aliás, as substâncias sonoras maiores do disco, como bem se prova em “Se Tudo é Relativo”, terna canção que tem na voz de Ana e nas cordas do violão de Bem os encostos perfeitos para nela repousarmos o corpo e os ouvidos.
São várias as participações de peso neste trabalho, desde logo a de Domenico Lancellotti, mago de percussões e baterias várias, assim como de Bruno di Lullo e, evidentemente, de Bem Gil. Nas composições, destaque também para Letícia Novaes, mais conhecida como Letrux, que empresta a Mãeana 2 a canção “Abseduzida”. Outro momento de grande efeito é “Menina Neon”, de Bruno Capinan, sobrinho do bem conhecido poeta e músico José Carlos Capinan, um dos homens do marcante e imortal viramundo tropicalista. Avançando no disco, mais uma faixa chama a atenção, a bonita “Elo Ela”, de Luz Marina. Até que, finalmente, Mãeana 2 fecha com “Reverso Universo (Mãe Ana II)”, tema em que Ana Cláudia Lomelino partilha o canto com a voz funda de Mateus Aleluia Filho. Excelente momento, encerrando da melhor maneira este tão especial álbum, todo ele marcado pelo espírito feminino, apologia suave e belo da maternidade e dos seus encantos e mistérios.
Valeu a pena a espera por este novo trabalho de Mãeana. Ele continua o caminho singular inaugurado em 2015, aprofundando os temas que lhe são tão gratos. Mãe é a pessoa que gera, cria, cuida e protege aqueles que ama. Mãeana, a par de tudo isso, é também a voz que nos embala no caminho da serenidade, da pureza, do encantamento. Quando a ouvimos, as nossas cabeças limpam-se de nuvens e de sombras. E há sempre luz na sua voz e no seu jeito estelar.