Softscars (2023, Ninja Tune) é a etapa final de um lento processo de amadurecimento pessoal e criativo vivido pela singapurense Nat Ćmiel. Utilizando da identidade de Yeule, a artista passou os últimos anos imersa nos próprios sentimentos, estímulo para o fino repertório que marca as canções do introdutório Serotonin II (2019), ganha novo tratamento no posterior e ainda recente Glitch Princess (2022), mas que alcança melhor resultado no presente trabalho. É como uma combinação do que há de mais doloroso e libertador nas experiências emocionais acumuladas por Ćmiel e agora materializadas em composições.
“No jardim da sua mente / É escuro e espinhoso, doce e pegajoso / E assim como o mel, transborda“, canta na agridoce faixa-título, uma delicada representação poética das angústias e temas incorporados por Yeule durante toda a execução do disco. São canções que funcionam como janelas para o passado, resgatando memórias empoeiradas ou mesmo acontecimentos ainda recentes vividos por Ćmiel. “Estou olhando para você do penhasco / Estou olhando para baixo e sinto a felicidade“, confessa na já conhecida Sulky Baby, música que não apenas destaca a força criativa e sensibilidade dos versos, como a potência dos arranjos.
Diferente dos antigos trabalhos de Yeule, sempre centrados em experimentações caseiras com a música eletrônica, Softscars chama a atenção pelo maior aproveitamento dado aos instrumentos. São guitarras em primeiro plano, sempre carregadas de efeitos, como um aceno para a obra de veteranos como Lush, The Smashing Pumpkins e demais nomes de peso da década de 1990. A própria canção de abertura, X W X, com suas vozes berradas e ensurdecedores blocos de ruídos, funciona como uma boa representação dessa força avassaladora que move o disco, como um complemento aos sempre confessionais versos de Ćmiel.
Entretanto, a beleza de Softscars não está na completa ruptura em relação aos antigos registros de Yeule, mas na forma como Ćmiel alcança um ponto de equilíbrio entre o próprio passado e esse novo tratamento criativo. São canções que se entregam ao uso de temas ruidosos, porém, pontuadas por momentos de maior leveza e meticuloso diálogo com o pop. Exemplo disso pode ser percebido em 4ui12. Enquanto a base da composição evoca nomes como My Bloody Valentine, batidas eletrônicas e melodias altamente pegajosas parecem pensadas para grudar na cabeça do ouvinte logo em uma primeira audição. E ela não é a única.
Durante toda a execução do trabalho, Yeule mergulha na construção de faixas que alcançam um ponto de equilíbrio entre o experimentalismo e o pop, garantindo maior fluidez ao repertório. São momentos de calmaria e caos, mas que em nenhum momento tiram o foco do que parece ser o principal componente criativo do registro: os sentimentos de Ćmiel. Da poesia melancólica que se apodera de Inferno e Dazies, passando pelo lirismo metafórico de Software Update, em que reflete sobre os relacionamentos virtuais tóxicos, sobram momentos em que somos soterrados pela força das emoções que invadem os versos.
Claro que esse forte caráter emocional dado ao disco tem seus riscos. Do momento em que X W X abre as portas do registro, tudo gira em torno de romances fracassados, términos e recomeços vividos pela singapurense, o que resulta em uma obra que pouco evolui liricamente quando próxima do repertório de Glitch Princess. Entretanto, a habilidade de Ćmiel, sempre em colaboração com o coprodutor Kin Leonn, está justamente na capacidade em tornar composições talvez inofensivas e limitadas em verdadeiras preciosidades. São texturas, fragmentos de vozes e pinceladas instrumentais que condensam décadas de referências, porém, preservando o que parece ser uma identidade criativa própria das criações de Yeule.