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No seu terceiro registo de longa duração, a americaníssima Jessica Pratt aproveita para ajeitar a coroa que permanece assente na sua cabeleira loira que a define como rainha inquestionável de um universo sonoro que só pode ser encontrado dentro dos seus discos.
Sim, são todas iguais. Mais coisa, menos coisa. Mas as nove canções que compõe o terceiro álbum da californiana Jessica Pratt não servem para serem tocadas a sós, mas sim como gotas de água que enchem o copo de um folk líquido e fantasmagórico que só lhe pretence a si. Habitualmente curto – Quiet Signs, lançado a 8 de fevereiro através da costumeira Drag City – não chega sequer à meta da meia-hora, mas ao longo dos vinte e sete minutos que o fazem, Jessica Pratt faz questão de sublinhar que é dona de um mundo só seu para o qual nos convida calorosamente a entrar.
Não há mal nenhum em Quiet Signs ser todo praticamente a mesma cantiga morosa que rasteja sem grandes pressas do início ao fim do disco: talvez seja mais evidente aqui do que em esforços do passado, como o homónimo de estreia Jessica Pratt, de 2012, ou On Your Own Love Again – sem dúvida o seu pico artístico – de 2015. O problema dissolve-se na aparente intenção de nos transportar para uma atmosfera lânguida e morna, como quando nos perdemos a namorar com as órbitas uma lareira que crepita na sala de estar. Não importa distinguir canções quando estas se abatem umas como gotas de água que formam um rio que segue o seu caminho com calma de desaguar no mar. Desde a sua nascente que Pratt nos dá pistas que será uma viagem sem grandes desvios: afinal de contas, as notas do piano de “Opening Night” não tardam a converter-se nas cordas da guitarra de “As The World Turns”, na qual somos postos imediatamente diante do domínio absoluto da voz de Pratt, inquestionavelmente um dos seus maiores trunfos – aveludada e alienígena, soa a um estranho instrumento de sopro que se perdeu nos manuscritos de uma idade média de livro. Em “Fare Thee Well”, novo capítulo, nova personagem: além do gentil toque do orgão (tocado pela própria) que sussurra ao de fundo, a despedida é feita pelo cano de uma flauta transversal que nos relembra momentaneamente mais Pernambuco do que Califórnia. Mas não nos iludamos: Quiet Signs é decididamente americano, um americanismo bucólico paralisado na natureza morta das palavras de Whitman e, agora, recuperado pelo timbre anasalado de Pratt, que deixa deslizar dos lábios deixas de vaga contemplação poética como “he’s the lovelorn colors of / somewhat halpless in his touch / he’s the undiscovered night, a parting line”, recuperadas do refrão do single “Poly Blue”. O destaque deve também incidir sobre momentos como o dedilhado quimérico de “Crossing”, ou a meiguice melódica de “Aeroplane”, na qual nos despedimos da voz élfica de Pratt durante sabe deus quanto mais tempo.
E assim nos deixa Jessica Pratt: furtiva, surge do meio de nenhures com mais um disco que só podia ter sido feito por ela, sem dar grandes sinais de quando voltará a surgir dos arbustos: resta-nos ficar à coca, de binóculos na mão, à espera de mais uma visão do bicho raro. Porque Jessica Pratt é-o, e por isso é que se pode dar ao luxo de fazer um disco que alguém de ouvidos mais irrequietos vá acusar como “uma grande seca” ou “todo igual”: o todo igual de Pratt não é igual a mais nenhum disco que tenha o que vá ser lançado este ano ou nos próximos, por isso, há que apreciá-lo. É graças à voz de Pratt, uma daquelas vozes que brotam da garganta de alguém quase como por acidente de mil em mil anos (“um anjo que foi expulso do Céu por ter sido apanhado a fumar cigarros”, descreveram-me uma vez, e a frase continha tanta beleza e genialidade que nem me atrevo a tirar-lhe as aspas que a acusam imediatamente como de outro), à sua estranha forma de jogar o jogo da língua inglesa e ao talento de produção de Al Carson, que consegue fazer com que os discos contenham dentro de si o ar parado de uma sala de estar, que é um tesouro. Por isso, há que saber olhar pela janela e gostar da vista, porque, mesmo que os campos verdejantes e as vacas a pastar nunca mudem grande coisa, amanhã cedinho chegamos à cidade e não há nada assim por esses lados.