segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Goldfrapp – Felt Mountain (2000)


 

Um disco que é um exercício de hipnotismo, repleto de coisas boas, estranhas, suaves, mas inquietantes também. Uma banda sonora de um filme que nunca existiu. Elegante e frágil ao mesmo tempo. Uma pequena obra-prima de sedução sonora.

De início, o que nos pode vir à cabeça é estarmos perante uma banda sonora de Ennio Morricone. Puro engano. Não é nada do que pensamos, por isso o mistério adensa-se enquanto ouvimos mais uma faixa e outra e outra ainda. Entretanto, podemos imaginar tratar-se de um acompanhamento sonoro para um romance de Paolo Cognetti. As Oito Montanhas, por exemplo. E, mais uma vez, estamos equivocados. O que é certo, sem dúvida, é haver uma certa neblina alta que torna frio o ambiente, mas que ao mesmo tempo nos vai agasalhando, como se coisas tão distintas pudessem tornar-se possíveis. Parece tudo um sonho, ou uma realidade longínqua da qual as certezas são tão esparsas e ténues que parecem diluir-se. Mas o som insiste em ser vibrante, do princípio ao fim. Há muito que não passávamos por tudo isto. Há muito que não colocávamos a rodar esse tremendo primeiro disco dos Goldfrapp. Felt Mountain é um álbum que não para de nos surpreender, de tão enigmático, de tão sereno, embora também com uma saliente pontinha de inquietação. É muito bonito, muito etéreo e declaradamente onírico. Afinal, Felt Mountain pode ser apenas um lugar onde nos sentimos bem, tão bem que nele conseguimos levitar um pouco, embora nunca tirando os pés do chão. Para primeira tentativa de definição, não nos parece mal.

Estávamos no ano 2000 quando Felt Mountain foi dado a conhecer. Com ele, os Goldfrapp iniciaram o seu caminho. Alison Goldfrapp e Will Gregory nunca mais fizeram um disco deste calibre, sem desprimor para os restantes, e são já muitos. Mas a verdade é que há momentos irrepetíveis, e Felt Mountain cabe perfeitamente nesse lugar destinado aos álbuns de eleição. Aquele assobio que praticamente abre “Lovely Head” é das coisas mais belas que podemos ouvir, um apelo irrecusável, uma suave tentação, uma espécie de irresistível canto de sereia. “It start’s in my belly / Then up to my heart”. A sedução é imediata e prolongada. Dura o tempo do tema inicial, bem como dos quase quarenta minutos de todo o disco. Estamos crentes que nos conta uma história, mas talvez nunca a consigamos decifrar. Se o fizéssemos, perder-se-ia o encanto? Talvez, por isso desfrutar possa ser melhor do que entender. Fiquemos por aí, pelo usufruto simples daquilo que desperta os nossos sentidos quando ouvimos Felt Mountain, esse maravilhoso pequeno monstro das montanhas de feltro tão sensíveis e tão puras. “Frankenstein would want your mind / Your lovely head”, canta-se.

Felt Mountain tem apenas nove canções. Parecem, todas elas, umbilicalmente ligadas por qualquer coisa que pulsa de forma suave e delicada. Há, nesse conjunto de temas, um imaginário cinematográfico de excelência (para além do referido Ennio Morricone, é inevitável pensar-se em John Barry, por exemplo, no tema “Pilots”, e nas suas divagações bondianas), convocando-se, à vez, instantes épicos, embora sem espalhafato, mas também um espaço de fragilidade em que, por vezes, algo parece estar no limite de se quebrar, como se vidro fosse. Ou cristal, talvez.

Não se pense que Felt Mountain resulta apenas de uma receita em que os ingredientes são puros e delicados. Onde há sedução pode haver perigo, e a sensação que por vezes fica é a de que todo esse venturoso edifício pode desmoronar a qualquer instante. “It’s a strange day / No colours or shapes / No sound in my head” são os versos inicias de “Utopia”, a penúltipla faixa do disco. Eles concorrem para essa crescente impressão de alguma elegante decadência.

Ouvir Felt Mountain é um exercício muito recompensador. Oferece-nos muitas vantagens. Purifica-nos a alma, embora esteja repleto de ambientes de fumo, e é  negro, mesmo que nos coloque na perspetiva de vermos o sol que se eleva por detrás das mais altas montanhas. Na verdade, se quisermos voltar a defini-lo, talvez Felt Mountain não seja mais do que isto: um romântico poema sonoro de sombras e luz.



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