2 de Abril é um disco bonito e intenso. Um sério candidato a disco do ano. A Garota Não já ganhou espaço nos nossos ouvidos e nos nossos corações. Vale a pena ir à luta com ela.
Durante os anos do Estado Novo, a música popular portuguesa viu-se sujeita a ser, para alguns, uma arma pronta a disparar. Entre tiros certeiros e balas perdidas, foram vários, e amplamente conhecidos, os músicos que mais deram ao gatilho, todos eles homens que acabaram por sofrer na pele as consequências do exemplar provérbio: quem vai à guerra, dá e leva. Como saldo desses permanentes confrontos, ergueram-se os heróis dessa guerrilha musical, que são até hoje cultuados por muitos, e ignorados por outros tantos, provavelmente. Como se percebe, a ideologia ocupa sempre um espaço que transcende épocas e acende ódios permanentes. No entanto, e voltando aos nomes que ficaram, entre mortos e vivos, entraram na nossa história musical os incontornáveis José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira, Fausto Bordalo Dias e Sérgio Godinho, isto para não irmos além de um bom punhado deles. Assim, vistas as coisas por um outro ângulo, sobressai o facto de não haver uma voz feminina de estatura idêntica aos nomes referidos. Ou de não existir, pura e simplesmente. Como teria sido essa voz feminina que, na eventualidade da sua existência, ocupasse o seu lugar nesse confronto, nessa luta que fez história na história da nossa música popular de intervenção? A resposta, mesmo que desfasada desse tempo pode, afinal, apresentar-se. E tem um nome: Cátia Mazari Oliveira.
A Garota Não é um interessantíssimo projeto musical. Nele, Cátia também luta. Luta pela arte, pela música, pela vida que gostaria que fosse igualitária, sem excessos ou sobras sociais. Um mundo onde se pudesse viver sem se sofrer a dor de existir. Num tempo como o nosso, de já longa democracia, pode parecer extemporâneo, mas talvez ainda valha a pena haver vozes assim. A ideologia é humanitária, não necessariamente política, e também é por isso que faz tanto sentido. As letras são poéticas, trabalhadas, percebe-se que a escrita das palavras obedece a critérios vastos e a autores restritos, provavelmente os que mais transporta dentro de si. E, por isso, percebe-se bem que há leituras feitas, muitas e de qualidade, assim como há quilómetros de músicas ouvidas, exatamente como deveria ser num artista que quer ser portador de tradição, portador de um lastro de cultura que se fez tantas vezes de sons e de palavras (“como punhais”, como diria o poeta que Cátia também canta neste álbum). A sensibilidade feminina que aqui se ouve e lê tem um particular encanto, parecendo debruçar-se sobre os assuntos que trata de modo a parecerem vinculados a uma certa beleza nostálgica e perene. O disco tem como título 2 de Abril, e traz vinte canções em uma hora e catorze minutos. É longo, talvez um pouco maior do que poderia ser, mas também não deixa de ser verdade aquilo que se diz sobre a importância relativa do tamanho que tudo tem ou pode ter, não é verdade? Sim, é isso. Vamos andando por essas duas dezenas de paragens e vamos apreciando 2 de Abril até percebermos que estamos perante um dos candidatos a disco do ano. Ouça-se “Canção Sem Final”, “A Grande Máquina” (que poderá, eventualmente, vir a dar um dueto interessante com Sérgio Godinho, uma vez que parece dever-lhe alguma coisa, sobretudo em determinadas partes cantadas ao jeito de quem há muito tem um brilhozinho nos olhos), ou ainda “Não Sei o Que É Que Fica”, “Casa de Mãe” (em perfeito sotaque transatlântico) ou ainda “Urgentemente”, com texto do imenso poeta Eugénio de Andrade. A singeleza é gémea das “manhãs claras”, e o “silêncio nos ombros” tem a força intensa da verdade que o poema não diz. Talvez seja a melhor canção de 2 de Abril, mas esse estatuto roubará luz e brilho a algumas outras que são também de enorme qualidade.
A Garota Não merece que a contradigamos em absoluto, sem quaisquer hesitações e de forma radical. Para nós, não vá lerem erradamente a primeira oração deste parágrafo, o veredito está dado: esta garota, sim!
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