O penúltimo disco de Sam Cooke, Night Beat, é a obra-prima do mestre da soul.
Sam Cooke vem do gospel, liderando os Soul Stirrers entre 1950 e 1956, cujos cânticos de fé são tão sublimes que nos comovem até a nós, ateus empedernidos. Mas o circuito dos espirituais negros é demasiado pequeno para o tamanho da sua voz (uma das maiores do século XX, no mesmo campeonato do que Sinatra e Nat King Cole). De maneira que, em 1957, entra no mercado da pop, profano, por definição. Música do diabo, acusarão os mais devotos, escandalizados com a blasfémia. Foi assim, tornando secular o que era da Igreja, que nasceu a música soul, e Sam Cooke foi um dos primeiros – e um dos mais inspirados – a ousar essa alquimia.
Assim como o rock’n’roll levara a música negra a audiências brancas, Sam faz o mesmo, entrando no mercado dos adolescentes americanos de todas as cores. O seu sucesso é retumbante, dezenas de singles a subir aos lugares cimeiros, não só da tabela R&B, mas também da tabela pop, a mais cobiçada, a que muda o jogo. Sam a abrir, com o seu génio e determinação, portas que antes estavam vedadas.
Estamos na era dos singles. Os LPs são mais uma manha para vender os singles uma segunda vez – misturando-as com uma macheia de temas menores – do que uma declaração estética em si mesma. Sam Cooke não é excepção. Com uma agravante: a sua ambição em conquistar a audiência branca conduz, por vezes, a uma certa diluição da crueza R&B, atolando a sua bonita voz em coros e orquestrações canderel.
Mas Sam tem a oportunidade de emendar a mão com o seu penúltimo disco, Night Beat, de 1963, que não só é belíssimo do princípio ao fim, como tem uma estética coesa, e uma temática transversal, quase um álbum-conceito sobre dor de corno e corações destroçados (o costume, portanto). Foi gravado em três sessões pela noite adentro, e esse feeling noctívago e fumarento ensopa todo o LP, evocando a melancolia da hora de fecho de um bar (o último cliente ao balcão bebericando, tristonho, o último whisky). O ambiente de gravação é intimista, apenas um punhado de (exímios) músicos de sessão colocando-se ao serviço da voz de Cooke, todo um exercício de elegante contenção.
Sam faz a sua magia do costume, dando roupagens modernas a velhos espirituais gospel. O tema de abertura, “Nobody Knows the Troubles I’ve Seen”, é um bom exemplo, todo um tratado sobre o sofrimento e a esperança. Quando canta “sometimes I’m up”, as notas sobem, cheias de luz e confiança. Quando, logo a seguir, confessa “sometimes I’m down”, as notas descem, tristes e pesarosas. A voz de Sam – cada vez mais vocal na luta pelos direitos civis – destapa o subtexto político antes escondido. “Mean Old World” faz o mesmo tele-transporte, do adro da igreja para a rua onde se luta: “o mundo é demasiado duro para se viver sozinho”…
“Lost and Lookin’”, com o mesmo ADN gospel, é quase a cappella – apenas um contrabaixo e um címbalo discretíssimos são acrescentados à sua voz de oiro. Se prova derradeira fosse precisa de que Sam Cooke é um intérprete da liga olímpica, esta pérola dissipa todas as dúvidas.
Muitos dos temas são blues – ou perto disso -, a maior parte dolentes, desabafos na madrugada solitária, em frente ao retrato a preto e branco, hoje, dolorosa memória. Alguns são da autoria do próprio Sam, como na comovente “Laughin’ and Clownin’”: rindo e apalhaçando, só para não chorar…
E, para não o acusarem de miserabilismo sentimental, também há blues dançáveis e malandros por aqui, como “Shake, Rattle and Roll” e “Little Red Rooster”. Sam é generoso neste último tema, deixando os músicos brilharem um pouco. Que o diga o puto Billy Preston, então com dezasseis anos, extraindo sons de um órgão Hammond que nunca o mundo ouvira antes. Sam canta “dogs begin to bark now” e as teclas começam mesmo a ladrar, sabe lá Deus como. Quando se segue o verso “hounds begin to howl”, Preston repete a brincadeira, uivando com os seus dedos mágicos. Entusiasmado com o balanço gingão, Sam apela: “play it, Billy!”, “answer, Ray!”, promovendo o saudável despique entre o hammond de Billy Preston e o piano de Ray Johnson, que gingam como se não houvesse amanhã. Nunca ninguém percebeu muito bem como esta magia do acontecer conseguiu ser captada no frio vinil…
Seja como for, a voz de Sam Cooke é sempre a protagonista de Night Beat. Não no sentido do exibicionismo de feira – da técnica pela técnica – mas sempre ao serviço das histórias que conta, com uma clareza e vivacidade invulgares, como quem conversa connosco. A naturalidade é tanta que nem nos apercebemos das nuances técnicas que vão enfatizando detalhes emocionais: a voz com mais grão ali ou o falsete dolente acolá para sublinhar uma comoção.
Um ano depois, no viço da sua vida e maturidade artística, um tiro à queima-roupa põe fim ao mais promissor dos futuros. Fica a perfeição de Night Beat como fraco – mas brilhante – consolo.
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