domingo, 2 de outubro de 2022

Gabriel o Pensador – Ainda é Só o Começo (1995)


 

Numa relação que pode parecer pouco óbvia, a música de Gabriel o Pensador é uma amálgama de MPB.

Um exercício curioso que podemos fazer com este disco: mostrá-lo a alguém que não conheça nem nunca tenha ouvido e pedir para tentar adivinhar o ano em que saiu. Sem qualquer pista, isto podia ser tanto de 1995 como de hoje em dia. Por um lado, a produção e samples dão uma sonoridade perene. Por outro, as letras reflectem um Brasil que, infelizmente, continua a padecer hoje de grande parte dos males de há 27 anos.

Mas a intemporalidade é apenas um dos méritos deste disco, o segundo álbum de originais de Gabriel o Pensador, na altura um jovem de 21 anos, oriundo da classe média/alta brasileira (isso existe?), bem pensante e bem falante, com um contexto sócio-cultural mais favorável do que boa parte dos seus conterrâneos. Estudou em bons colégios, teve acesso a cultura e boa vida, começou até por ser um playboy surfista mas ainda em adolescente ganhou consciência social e virou para aí as suas atenções. Conviveu com gente das favelas e daí veio também o seu primeiro contacto com o universo do rap.

Bom observador das práticas e costumes do seu país, de quem lá vive e sobretudo de quem governa, Gabriel nasceu dotado de uma eloquência que lhe permitiu tornar-se numa das vozes mais importantes, mais activas e com maior impacto não só na música brasileira mas também na vida de milhões de pessoas. Via crítica mordaz e pertinente, denúncia feroz ou retrato quase humorístico, Gabriel põe o dedo em várias feridas que o Brasil tinha e, infelizmente, ainda tem: violência policial, corrupção em vários níveis, machismo tóxico, seitas que sugam os crentes até à medula, sistema educacional débil e, omnipresente, a miséria financeira (de uns) e moral (de outros). Embora seja um disco bastante coeso em que a fasquia está sempre num nível bem alto, podemos destacar canções como “FDP³” (filhadaputa filhadaputa filhadaputa), “Mentiras do Brasil” (que devia estar impresso e publicado em todas as paragens de autocarro) e “Faça o Diabo Feliz” (talvez a melhor música do disco e que tem um surpreendente sample de um tema dos Soundgarden).

Com o primeiro disco, homónimo, deu-se a conhecer através de um hino anti-Collor de Mello (actualmente, amigo de Bolsonaro; na altura, presidente que tinha acabado de ser deposto, via impeachment), responsável por uma governação desastrosa que fez disparar o desemprego e aumentar as desigualdades sociais. Nesse disco, de 1993, Gabriel o Pensador já revela ao que vem, mas ainda de forma um pouco mais crua. Em Ainda É Só o Começo, alarga o espectro – lírico, vocal e musical – e assina um disco essencial que extravasa as fronteiras do hip hop.

Se por um lado, bandas norte-americanas como Public Enemy ou Run-DMC foram grandes influências, Gabriel também vai buscar muita da sua estrutura musical ao reggae de Bob Marley, à vertente mais rock da pop de Michael Jackson e, num sem fim de estilos que lhe correm no sangue, toda a tradição da música Brasileira. Desde os deuses Gil ou Buarque à instituição rock Legião Urbana, a música de Gabriel o Pensador é um verdadeiro tributo à brasilidade. Nas músicas deste disco encontramos samples ou citações de nomes como os Mutantes, Milton Nascimento, Rita Lee, Azimuth ou até de uma ópera de Carlos Gomes. A homenagem à música brasileira, em seus diversos estilos e facetas, vai ser alargada nos discos posteriores de Gabriel, mas por agora já temos um bom ponto de partida. Numa relação que não parece nada óbvia, sem MPB não haveria o rap de Gabriel o Pensador, ele bebeu essa tradição toda, digeriu e absorveu, e mesmo quando não é declarada a citação, a influência está lá.

Outro grande mérito deste disco – já tinha começado com o primeiro álbum mas com este foi mais expressivo – foi o carácter diplomático, Gabriel foi uma espécie de embaixador em Portugal. Trouxe a música do Brasil a uma geração de miúdos que estavam fartos dos pais que só ouviam o “Leãozinho” ou das paroladas que chegavam através das telenovelas. Gabriel era novo, fresco, com uma linguagem mais próxima da dos adolescentes que, finalmente, encontraram um representante da música brasileira à sua medida.

É certo que Gabriel, mais tarde na carreira, divergiu para outras paragens mais popularuchas, também é certo que a dada altura se tornou presença mais do que habitual em festas populares, de Lisboa a Trás-Os-Montes. Mas antes de atingir essa saturação, Gabriel foi altamente relevante. E mesmo depois, apesar da saturação, continua a merecer um lugar nos nossos corações e continuamos a ostentar orgulhosamente alguns discos (e livros) nas nossas estantes.

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