quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Behemoth – The Satanist (2014)


 

O décimo dos Behemoth, The Satanist, é um dos discos de metal extremo mais aclamados da sua década.

Os primeiros anos de uma banda costumam ser os mais inspirados, dissipando-se, aos poucos, o rasgo original. Mas sempre houve, só para chatear, os contra-exemplos, aqueles que vão apurando devagar o seu sabor, em pipa de carvalho, chegando tardiamente ao seu pico criativo. Justamente o que aconteceu com os polacos Behemoth: só à décima tentativa é que a sua obra-prima chegou, mais de vinte anos depois da sua formação. Falamos de The Satanist, de 2014, um dos álbuns de metal extremo mais aclamados da sua década.

Porquê naquele momento? Talvez porque Nergal, o líder da banda, tenha sobrevivido então a uma leucemia, e o que não mata quase sempre fortalece. A consciência aguda de que a sua vida esteve por um fio aguçou, porventura, a sua vontade de deixar algo perene, que sobrevivesse a ele próprio – pelo menos é essa a nossa psicanálise de pechisbeque. E talvez toda essa crise existencial convidasse a questionar os fundamentos da sua própria estética.

O que é que faz um bom disco de metal? O peso? A velocidade? A técnica? A obediência a fórmulas ditadas pelo estilo? Os discos anteriores tinham, por vezes, caído nessas armadilhas, colocando demasiada ênfase no virtuosismo dos ataques death metal. The Satanist não comete o mesmo erro, trocando os riffs tecnicamente prodigiosos por algo bem mais precioso: canções memoráveis. E, para se reinventarem, nada como revisitar as suas origens black metal, voltando a pôr a atmosfera arrepiante e a melodia à frente das acobracias pirotécnicas…

A concisão ajuda. São apenas nove canções, 45 minutos sem qualquer gordura. Cada tema tem a sua personalidade própria, não confundível com a do seu vizinho do lado, e isso traz cor e diversidade ao cozinhado. Há temas mais arrastados, quase doom, como a demoníaca “Blow Your Trumpets Gabriel”, orgulhosamente suja e primitiva. Outros são mais rápidos e furiosos – como “Furor Divinus” e “Amen” -, com os seus ataques demolidores de bateria, como se fôssemos esmagados por uma manada de búfalos em debandada. “Ora Pro Nobis Lucifer” é diferente, com um groove a-thrash-alhado que nos ordena: “mosh!, já!, até desabar o pavilhão do concerto!”. Já a balada que dá nome ao disco é quase pop no seu açúcar melódico, se bem que disfarçada com vozes guturais e guitarras distorcidas, não fossem os metalheads mais puristas apedrejarem-nos pela infâmia.

O mesmo espírito de diversidade acontece dentro de cada tema. Veja-se “In the Absence ov Light”, cuja introdução frenética e destruidora desemboca numa placidez acústica – Nergal declamando um texto em polaco, com um saxofone jazzístico de fundo, algo completamente inédito, estamos em crer, num disco de (quase) black metal! Ou a sublime epopeia “O Father o Satan o Sun!”, que começa lenta e sinistra, para depois confluir num spoken word melódico, com uma voz hereticamente limpa – testando, mais uma vez, a tolerância dos metaleiros mais sectários.

É essa, aliás, uma das virtudes de The Satanist, a recusa em ficar confinado a qualquer preceito ou tabu estético. É o caso dos solos de guitarra – blasfemos pela aproximação ao universo do hard rock – ou o recurso a coros femininos e a inesperados instrumentos de sopro – como trompas, trombones e trompetes -, sempre diabólicos – diga-se em sua defesa – e habilmente soterrados na mistura, como se fossem longínquos chamamentos de Lucifer…

A voz de Nergal continua cavernosa e gutural, à death metal, mas a sua entoação é agora mais natural – percebendo-se com clareza o que diz – e mais expressiva, comovendo-nos com o seu arrebatamento apocalíptico. Da mesma forma, também a produção é agora mais orgânica, suja e quente ao mesmo tempo, em oposição à limpidez fria dos últimos discos. Tudo em The Satanist vai nesse sentido: mais humano, mais emotivo, mais verdadeiro.

Como seria de esperar, as letras são satânicas e blasfemas. O disco abre com uma imagem poderosa: a Virgem Maria dando à luz uma serpente (as palavras originais não são tão delicadas: “I saw the Virgin’s cunt spawning forth the snake”). Os mais devotos ficarão escandalizados. Os ateus acharão risíveis as provocações. Seja como for, as palavras são cuidadas e literatas, de um ultra-romantismo mórbido mas eloquente. A correspondência entre letra e música é total, ambas diabólicas e arrepiantes.

Mas não se assustem. É tudo estético e alegórico. Estamos longe dos macabros episódios acontecidos na Noruega dos anos 90, quando artistas da cena black metal estiveram envolvidos em assassinatos e incêndios de igrejas! O satanismo de Nergal é apenas filosófico, uma afirmação do homem contra as abstracções, uma defesa da liberdade do indivíduo contra os ditames colectivos. Satanás é apenas uma poderosa metáfora do livre arbítrio, nada mais. Podem ir à vontade almoçar a casa do Nergal, não vão acabar retalhados em cubinhos na arca frigorífica…

Sendo um disco pesadíssimo e acessível ao mesmo tempo, é uma excelente porta de entrada para quem queria entrar no mundo do metal extremo. Para os noviços, é natural que à primeira audição tudo pareça um ruído indistinto. Qual não será então o nosso espanto quando, no meio do denso e cerrado paredão de barulho, se encontra melodia (não pode ser!), harmonia (impossível!) e ritmo (isso ainda vá…). É então que a sua misteriosa beleza nos começa a assombrar…


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