domingo, 27 de novembro de 2022

Black Country, New Road – Ants From Up There (2022)


 

For the first time foi a introdução e Ants From Up There é o desenvolvimento de uma trama que promete ser inesquecível. Se o primeiro LP dos Black Country, New Road assenta num post-punk brusco e desenfreado, em que períodos sonoros serenos eram a exceção e não a regra, em Ants From Up There, o paradigma inverte-se: os temas são mais pacientes e contemplativos, mas igualmente intensos. 

No dia 24 de outubro de 2003, o Concorde cruzava os céus pela última vez e o capítulo mais supersónico da história da aviação chegava ao fim.

Três anos antes, a 25 de julho, na pista do aeroporto Charles de Gaulle, a unidade da gloriosa família de aviões que ligava Paris a Nova Iorque sofreu um grave acidente que vitimou todos os passageiros a bordo. De um momento para o outro, a aeronave mais veloz do mundo deixou de ser segura – o Concorde não tornou a voar e as grandes cidades intercontinentais voltaram a constituir pontos distantes no mapa.

O Concorde surge em vários momentos do novo álbum dos Black Country, New RoadAnts From Up There – nomeadamente na capa, cuja autoria pertence a Simon Monk, e em versos de diversas faixas (“Chaos Space Marine”; “Concorde”; “The Place Where He Inserted The Blade”; “Basketball Shoes”). Compreender as letras dos Black Country, New Road é uma tarefa difícil, porque as referências líricas do conjunto inglês, maioritariamente inseridas pelo vocalista e guitarrista Isaac Wood e depois trabalhadas pelo resto do grupo, não costumam ser autoexplicativas; obrigam o ouvinte a puxar pela cabeça. Deste modo, o papel de Concorde em Ants From Up There é pouco claro – mas apenas num primeiro momento. Lentamente, compreendemos o que o avião representa nas existências paralelas do álbum, da banda e de Isaac: uma linha de fuga.

A poucos dias do lançamento de Ants From Up There, os Black Country, New Road anunciaram que Isaac iria abandonar o grupo de forma a salvaguardar a sua saúde mental, pois o medo e a infelicidade que o jovem músico admite sentir são superiores ao prazer de tocar guitarra, cantar e dar concertos. De repente, as letras dos quatro singles que o conjunto havia partilhado ao longo dos últimos meses ganharam novas dimensões de compreensão (“Chaos Space Marine; “Bread Song”; “Concorde”; “Snow Globes”); deixaram de ser apenas faixas formadas por instrumentais geniais e letras oblíquas para ser revelações de um estado de espírito que precisa de descanso e apoio há muito tempo – temas como “Harlen”, “Snow Globes” e “Basketball Shoes” foram escritos antes do lançamento do primeiro álbum da banda, For the first time, há sensivelmente um ano. 

O que separa Ants From Up There e For the first time é a musicalidade de cada registo. O segundo álbum não forma uma simples continuação do primeiro, sendo um passo em frente na busca de novas sonoridades. Se o primeiro LP dos Black Country, New Road assenta num post-punk brusco e desenfreado, em que períodos sonoros serenos eram a exceção e não a regra, em Ants From Up There o paradigma inverte-se: os temas são mais pacientes e contemplativos, mas igualmente intensos. Na segunda produção, os sete ingleses (agora seis…) privilegiam canções com mais luz e esperança e concederam menos espaço a gritos e soluços. Assim, é justo afirmar que os temas de Ants From Up There resultam de reflexões mais ponderadas e de um trabalho conjunto mais complexo – em entrevista à Apple Music, os membros admitiram que, apenas no espaço de um ano, descobriram novas formas de fazer música em grupo, o que os conduziu a sonoridades mais pensadas e equilibradas.

É impressionante o facto das duas produções terem apenas um ano de diferença. Uma banda normal teria descansado a seguir ao álbum de estreia, mas os Black Country, New Road não obedecem a regras pré-definidas; preferiram pegar em rascunhos antigos e produzir um disco que tem tudo para ser um cult classic no futuro.

A cada audição, Ants From Up There fica mais viciante (For the first time, apesar da hecatombe musical que representa/representou, é um álbum mais duro, desgastante e por isso menos aditivo). Em relação ao antecessor, tem mais quatro canções que, por sua vez, oferecem mais 18 minutos de música líquida ao ouvinte.

O que separa Ants From Up There e For the first time é a musicalidade de cada registo.

O álbum começa com a faixa “Introduction”, que é isso mesmo: uma introdução. Ainda que conte apenas com cinquenta e quatro segundos, a faixa revela informação valiosa acerca da instrumentalidade que os Black Country, New Road querem implementar em Ants From Up There – e também algumas influências, desde Penguin Cafe Orchestra (nas cordas) até Los Campesinos! (no jogo entre guitarras elétricas e bateria). É um início que promete.

O tema “Chaos Space Marine”, de seguida, não se afasta muito do tease provocado por “Introduction”. Assim que a segunda faixa do LP irrompe, o ouvinte é surpreendido por uma espécie de pop-rock barroca que resulta, certamente, da independência criativa empreendida por cada membro da banda. De acordo com os Black Country, New Road, “Chaos Space Marine” é a silly song do álbum, constituindo um momento em que a criatividade musical supera qualquer barreira de seriedade. Realmente, após esta descontração sinfónica, Ants From Up There mostrar-se-á mais sóbrio, isto é, menos espalhafatoso.

A partir de “Concorde”, tudo muda. A terceira faixa do registo é quente e afetuosa e tem a capacidade de embalar até o ouvinte mais espevitado, mesmo que, nos derradeiros momentos, surjam vocais e guitarradas shoegaze, apoiadas por sopros de saxofone endiabrados. Em “Concorde”, existe uma convivência perfeita entre os sussurros de Isaac e os instrumentos musicais empregues; a ligação destaca-se especialmente a partir do minuto 01:17 na medida em que origina um plano sonoro que podia dar corpo a um soneto de amor – o verso «I was made to love you / Can’t you tell?» é um dos mais fortes em Ants From Up There. A dita pop-rock barroca volta a aparecer. 

A ternura permanece em “Bread Song”. Trata-se indiscutivelmente de um tema triste, escuro e íntimo – sobretudo até ao minuto 03:24. A partir desse ponto, a faixa muda levemente de figura, ficando mais rápida e rítmica por culpa de uma bateria repetitiva e de uma guitarra persistente. Deste modo, em “Bread Song” vivem duas canções diferentes que coexistem pacificamente. 

O título do quinto tema rouba o nome do filme que, juntando Robin Williams a Matt Damon, conta a história de um empregado de limpeza sabichão que resolve problemas abandonados em quadros de giz do I.M.T. – Good Will Hunting! No entanto, a música em nada se relaciona com a película; “Good Will Hunting” explora um romance com os dias contados: a miúda, que adota o estilo de Billie Eilish, mudou-se para Berlim e não responde a mensagens de telemóvel. “Good Will Hunting” é uma das músicas mais catchy do álbum. A faixa é apresentada por um sintetizador que, repentinamente, possibilita o surgimento de uma guitarra divertida, um coro comunitário e de uma bateria profunda (mais uma vez).

Neste momento, existe apenas uma certeza: Ants From Up There constitui uma raridade artística; trata-se de um álbum que comprova o maior milagre da humanidade – a Música.

À semelhança de “Bread Song”, “Haldern”, na sexta posição, corresponde a um momento bastante melancólico. Contudo, o desgosto que o ouvinte poderá sentir ao longo da faixa perde força assim que se aperceba de que “Haldern” é fruto de um exercício de improvisação – o tema surgiu durante o concerto do conjunto no Haldern Pop Festival at home, na Alemanha, em 2020. As derradeiras notas da faixa são maníacas e compulsivas (a parte final da composição partilha muitas semelhanças com “The Sound Of Someone You Love Who’s Going Away And It Doesn’t Matter”, dos já mencionados Penguin Cafe Orchestra). 

De seguida, em “Mark’s Theme”, os Black Country, New Road introduzem um interlúdio. A composição, elaborada a partir de um saxofone solitário, foi escrita por Lewis Evan em honra do tio, vítima de Covid-19, sendo, por essa razão, uma das fases mais bonitas de Ants From Up There – as eulogias são dolorosas, mas fecham as cicatrizes do coração.

O tema seguinte, “The Place Where He Inserted The Blade”, é, provavelmente, a melhor prestação da curta história da banda e resume a substância musical de Ants From Up There. Ao longo de sete minutos, os Black Country, New Road abraçam os instrumentos de forma calorosa. A faixa é conduzida por um piano brilhante que, recorrentemente, entrega a liderança a flautas divertidas, saxofones reluzentes e violinos ingénuos. Já a letra corresponde a uma resposta dos Black Country, New Road à late poetry de Bob Dylan

Perto do grand finale  de “The Place Where He Inserted The Blade”, dá-se a sensação de que Ants From Up There está a chegar ao fim, porque “Snow Globes” não entra exatamente de seguida. Ainda que comece de um modo tímido, a penúltima canção do álbum torna-se numa das composições mais intensas do registo – sensivelmente a partir do minuto 05:20, assim que Isaac Wood canta repetidamente o refrão, poderosos e eufóricos golpes de bateria abafam os outros instrumentos em utilização e a própria voz do vocalista.

A derradeira faixa do álbum é “Basketball Shoes”. Corresponde ao tema mais comprido do álbum (12 – emocionantes – minutos) e, entre os momentos de canto, dispõe de três ciclos instrumentais. À semelhança de “The Place Where He Inserted The Blade”, a última canção do LP tem a particularidade de representar a génese de Ants From Up There: a sonoridade é inventiva e estrondosa e a letra é abstrata. Os Black Country, New Road veem em “Basketball Shoes” uma medley; é uma observação certeira, porque, efetivamente, ao longo do tema é possível identificar apontamentos de emo-rock (reminiscentes de American Football), punk-rockjazz-rock e da tal pop-rock barroca. Por fim, relativamente ao poema que acompanha a música, mostra-se pertinente referir que o supersónico Concorde realiza o último voo – «Concorde flies in my room / Tears the house to shreds» –, transportando o ouvinte para um lugar distante numa viagem apoteótica.

Ants From Up There termina e as palavras para descrever o trabalho escasseiam. Numa fase em que From the first time ainda está a secar depois de ter sido pintado de fresco no coração das pessoas, os Black Country, New Road destroem uma barreira criativa que parecia inquebrável. Agora que Isaac abandonou o projeto, é difícil prever o futuro da banda, mas, a seu tempo, o tempo irá revelar o destino dos Black Country, New Road. Neste momento, existe apenas uma certeza: Ants From Up There constitui uma raridade artística; trata-se de um álbum que comprova o maior milagre da humanidade – a Música.




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