A despedida de Zeca Afonso, já debilitado pela doença, dos palcos, numa noite de lágrimas e vozes ao alto.
Portugal não tem uma tradição particularmente rica no que toca a discos ao vivo. Álbuns marcantes temos poucos: falamos de Amália no Olympia, ainda nos anos 50, falamos do excelente Xutos ao Vivo, de 1988, falamos de In Vivo, dos GNR, em 1990, e pouco mais. Mas, acima de todos, temos Ao vivo no Coliseu, de Zeca Afonso.
Este álbum, saído do espectáculo realizado em Janeiro de 1983 na então maior sala de concertos do país, tem lugar de pleno direito no topo da discografia do músico português. E foi gravado num momento muito particular da história do país e do próprio Zeca.
O concerto andava a ser preparado havia dois anos, e Zeca chegou mesmo a pensar que não se realizaria. Entre a primeira ideia para esse espectáculo e a sua realização, a doença (Esclerose Lateral Amiotrófica, que haveria de o matar em 1987) começou a afectar o músico. Aquilo que começara a ser pensado de uma forma acabou por ser assumido por muita gente como um adeus de Zeca à vida pública, e à música ao vivo.
Foi nesse ambiente emotivo que o Coliseu encheu até não poder mais. Zeca chegou a pedir para abrirem as portas a todos os que quisessem assistir, mas tal não foi possível por razões de segurança. Da sua parte, fez apenas três convites pessoais: aos militares de Abril Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço e Rosa Coutinho.
Mais do que um concerto de best-of ou um mero espectáculo musical, o evento foi assim encarado como uma despedida, uma derradeira oportunidade para os amigos e admiradores de Zeca lhe prestarem tão emocionante homenagem. Em palco, um Zeca cansado e já fragilizado, sem a omnipresente guitarra nas mãos, com a voz determinada mas aqui e ali a fugir-lhe, a sentar-se na abençoada cadeira, entre as canções.
O alinhamento percorre todas as fases e facetas da vida e da carreira de Zeca. O arranque, acompanhado apenas à viola e guitarra portuguesa, é pura Coimbra, onde tudo isto das canções havia começado. Depois do início com “Balada do Mondego” ou “Do Choupal até à Lapa”, o primeiro momento emocionante, que fez soltar as lágrimas de muitos, presentes e os que apenas testemunharam em disco: “Balada do Outono“, que nos desfaz com as palavras, prenhes de significado, “águas das fontes calai, ó ribeiras chorai, que eu não volto a cantar”. Absolutamente arrepiante.
A tradição portuguesa está sempre presente, com “Senhora do Almortão”, a lindíssima “Canção de Embalar” ou “Natal dos Simples”, no início da qual Zeca diz não ter a certeza de conseguir cantar de uma assentada (valeu a chegada do sempre solidário Francisco Fanhais, para lhe dar força e aquela voz discreta mas sempre presente). Mas há também África, muita África, esse continente no qual o músico viveu e que tanto o marcou, tanto pessoalmente como musical e politicamente. No clássico “Milho Verde”, Zeca relembra mesmo as ligações entre os ritmos das Beiras e os que conheceu em Moçambique, e que trouxe então para palco.
Outro momento alto desta fusão é “Papuça”, que se vai transformando até uma verdadeira desbunda rítmica, com toda a banda em palco a evocar os ritmos quentes e dançantes de África. Este tema, lembra Zeca na introdução, surgiu como uma evocação dos tempos do PREC, “essa época maravilhosa em que para se ser cidadão era necessário mais alguma coisa do que meter um voto numa urna”. Recorda essa altura, em que se sentia mesmo que as pessoas, o povo, estavam a tentar construir um país novo com as suas próprias mãos, com associações espontâneas, nas vilas e aldeias. “Uma época em que o povo estava efectivamente a ser um sujeito da História”, em que a população “se juntava para resolver o problema da escola, para calcetar as ruas, resolver o problema da higiene. Era esse ABC da política que constitui esse período maravilhoso que foi o PREC”, afirma.
De salientar outro aspecto ternurento. Com Fausto Bordalo Dias à guitarra, Zeca aproveita para chamar a atenção para um disco novo do amigo, o incontornável Por Este Rio Acima, e lembrando que estavam para sair discos novos de malta ali presente, como Luís Cília, Vitorino ou Sérgio Godinho. Todos companheiros a quem Zeca, generosamente, citava para os destacar, como que passando um testemunho geracional.
O alinhamento das canções foi mudando consoante as edições do disco, e também a transmissão da RTP, com menos de uma hora, conta apenas com uma selecção dos temas. Mas há sempre o espaço para os temas mais políticos, aliás, aqueles mais bem recebidos e cantados emotivamente pelo público: “A Morte Saiu à Rua”, nesse momento dedicado a Adriano Correia de Oliveira, “Os Vampiros” entoada a plenos pulmões ou a canção final, “Grândola, Vila Morena”, “essa canção novíssima”, como disse Zeca, convidando quem quisesse a juntar-se a ele no palco. Neste, os militares de Abril e todos os músicos em conjunto: Francisco Fanhais, Octávio Sérgio, António Sérgio, Lopes de Almeida, Durval Moreirinhas, Rui Pato, Fausto, Júlio Pereira, Guilherme Inês, Rui Castro, Rui Júnior, Sérgio Mestre e Janita Salomé.
Esse “Grândola, Vila Morena”, esse hino de um Portugal utópico que é maior do que o próprio país, foi o culminar de duas horas de espectáculo. Não havia uma garganta calada ou uns olhos enxutos em todo aquele imenso Coliseu dos Recreios. No final, as palavras de Zeca foram simples, as de sempre mas fundamentais: “25 de Abril, sempre!”.
Esta foi simbolicamente a despedida de Zeca mas não foi a sua última atuação ao vivo. No mês seguinte cantou nas Caldas da Rainha; em Maio no Coliseu do Porto e em Coimbra; e a a derradeira despedida em Beja a 1 de Junho.
Uma noite arrepiante, emotiva, feita de sentimento, sim, mas também de grandes músicas e de grandes músicos em palco. E de uma comunhão fraterna, profunda, entre artista e o seu público, da qual talvez já não sejamos capazes hoje em dia. Já o disco, Ao Vivo no Coliseu capta tudo isso, ainda por cima com um bom som. Um álbum absolutamente imprescindível para qualquer amante da música portuguesa, e que nos invade sempre de emoção e saudade, a cada audição.
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