sábado, 26 de novembro de 2022

José Afonso – Contos Velhos, Rumos Novos (1969)


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Depois de Baladas e Canções (1964) e de Cantares do Andarilho (1968), os dois primeiros álbuns de Zeca Afonso, o artista faz sair Contos Velhos, Rumos Novos, e desde logo se percebe que o título do disco não é enganador. Um novo e marcante espectro (o de África) entra no seu jogo musical.

Na verdade, um novo horizonte foi recebido e interiorizado por Zeca Afonso. Um horizonte sonoro, mas também poético, fazendo com que se alterasse um pouco o rumo anterior, até por via das preocupações sociais e ideológicas emergentes. A Guerra Colonial Portuguesa havia começado a fazer história desde o início da década de sessenta do século passado, mas só a partir de Contos Velhos, Rumos Novos (pelo menos de forma mais óbvia e evidente) começa a ter tradução musical na cabeça do artista. Um pouco antes do seu lançamento, e ainda no decorrer do último ano dessa década, Zeca Afonso edita, pela Arnaldo Trindade Cª. Limitada – Orfeu, o single que tem “Canta Camarada” no lado B e “Menina dos Olhos Tristes” na face principal, poema do extraordinário poeta Reinaldo Ferreira, aqui em versão musicada pelo próprio Zeca. Note-se que esse mesmo texto poético já havia sido cantado e gravado por Adriano Correia de Oliveira, cerca de cinco anos antes, mas por via do cunho poético dos versos de Reinaldo Ferreira, foi rapidamente retirado do mercado pela censura vigente. Um poema sobre soldados que chegavam mortos à pátria em caixões de pinho não era, de todo, conveniente. Mas quem regressava, então, de África, mais precisamente de Moçambique, era o “fadista de Coimbra”, pronto a tornar-se, sobretudo a partir deste Contos Velhos, Rumos Novos, cantor de protesto, se assim quisermos adotar a expressão que tantos artistas daquele tempo rotulou. A realidade que viveu e conheceu na antiga colónia portuguesa entranhou-se na pele, e foi o próprio que afirmou, a propósito dos anos lá vividos, que “O corpo voltou antes. A cabeça ainda estava um pouco por lá, pelas terras de Moçambique. E demorou uns meses a aclimatar-se, a perceber como trazer África para dentro das canções.” Compreendida a maneira de concretizar África no seu trabalho, deu-se o nascimento de Contos Velhos, Rumos Novos.

Foi um passo importante na carreira do músico nascido na pequena Veneza portuguesa, Aveiro. Em pleno Estado Novo, esse passo em frente poderia vir a ter os seus percalços, mas perspetivando os tempos, agora que deles estamos já algo distantes, e sobretudo conhecendo um pouco do espírito e da determinação de Zeca Afonso, talvez não houvesse outro passo a dar. Era inevitável. O risco teria de ser corrido. Assim foi. Musicalmente, e despido das amarras do fado de Coimbra, Zeca Afonso lança-se a outros sotaques sonoros. Já não basta a viola do grande amigo Rui Pato. É preciso um novo imaginário musical, são necessários novos arranjos, são obrigatórias palavras que saibam resistir ao que o tempo impunha como mordaça “com panos de seda fria”. É assim que nascem temas como “Era de Noite e Levaram”, canção de contornos acentuadamente políticos.

No entanto, o golpe dado com o seu próprio passado musical não se opera de forma absoluta e radical. Em Contos Velhos, Rumos Novos há ainda espaço para a tradição popular, para o imaginário poético que foi berço do nosso lirismo (o tema de abertura, “Bailia”, do clérigo e trovador Airas Nunes, galego do séc. XIII), ou ainda para um penoso olhar sobre a interioridade portuguesa, como poderá ser exemplo “Oh! Que Calma Vai Caindo”, tema popular da Beira-Baixa. Temas populares, aliás, não faltam neste trabalho, sendo “S. Macaio”, “Deus te Salve, Rosa” e “Lá Vai Jeremias” boas provas disso. Mesmo assim, balanceado pelos caminhos da tradição e da inovação, uma última referência terá de ser feita sobre este longa-duração de 1969, o tema “A Cidade”, que encerra o álbum e que foi a única parceria criativa entre Zeca Afonso e o poeta Carlos Ary dos Santos. É um tema muito bonito, sem dúvida.

Contos Velhos, Rumos Novos é, portanto, um álbum que inaugura um novo caminho no trajeto musical de Zeca Afonso, caminho esse que continuaremos a trilhar neste Especial Altamont. Próxima paragem: o icónico Traz um Amigo Também.

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