A musicalidade dos BADBADNOTGOOD volta a extravasar fronteiras jazz e o resultado final é impressionante – e viciante. Talk Memory não é um álbum de uma audição apenas, porque, ao longo de oito faixas, obriga a várias viagens em busca da total compreensão de todos os sons.
A passagem do tempo acelera a cada dia que passa. Não há forma de a travar nem de a abrandar. Tem sido assim desde o início. No fundo, o tempo segue as suas próprias regras e nós seguimos as nossas. O tempo é um conjunto de pequenas bolas de areia cujos grãos se desfazem quando contactam com as nossas mãos inflexíveis. Ao longo deste processo, só nos podemos agarrar à memória. É difícil compreender que 2016 foi há cinco anos atrás. Ainda que o mundo esteja totalmente diferente, sentimos que nada mudou e que tudo continua igual. (Disclaimer: Está tudo diferente. Basta estar atento às notícias e recordar os últimos dois anos da humanidade.) Hoje, olhamo-nos ao espelho, reconhecemos a mesma pessoa e assumimos, mais uma vez, que a realidade não sofreu qualquer alteração, mas é mentira. O mundo mudou e nós mudamos ao ritmo dele.
É igualmente difícil compreender como é que os BADBADNOTGOOD não lançavam um álbum há tanto tempo. Podem ser músicos jazz, mas nenhum membro do grupo está na casa dos setenta. Falamos de jovens inventivos, criativos, pensadores e revolucionários. Neste contexto, seria de esperar que, depois do lançamento de IV (2016), o conjunto canadiano tivesse partilhado mais projetos e incorporado um ou outro álbum na sua discografia. Não foi o que aconteceu. No entanto, a banda de Toronto não baixou os braços e lançou um bom número de singles, entre os quais se destacam aqueles que contam com a colaboração do também canadiano Jonah Yano. O bonito cover “Key To Love” e o saudoso EP Goodbye Blue foram matando a sede dos ouvintes da banda, que puderam também conhecer uma faixa que contou com a participação do desaparecido MF DOOM (“The Chocolate Conquistadores”, uma produção inspirada na “Los Conquistadores Chocolates”, de Johnny Hammond, de 1975) e outra (“Running Away”) que juntou os BADBADNOTGOOD aos amigos Samuel T. Herring, colaborador em IV, e VANO 3000.
As alterações na composição do grupo podem justificar a inatividade verificada. Realmente, o mundo mudou e o esqueleto dos BADBADNOTGOOD mudou com ele. Em dezembro de 2019, Matthew Tavares, um dos membros fundadores do conjunto, anunciou a saída da banda para concentrar toda a sua atenção no seu projeto a solo (Matty), continuando, no entanto, a colaborar como contributing songwriter. A verdade é que Chester Hansen (no baixo), Alexander Sowinski (na bateria) e Leland Whitty (no saxofone) estão a dar conta do recado e, em 2021, os BADBADNOTGOOD estão mais fortes do que nunca.
Compreende-se a quietude dos músicos canadianos. De certa forma, o hiato demonstrou maturidade e independência criativa, na medida em que os BADBADNOTGOOD souberam esperar pelo momento certo para voltar ao ativo. E verdade seja dita: a banda não desapareceu dos radares entre 2016 e 2021. Se há algo que distingue os BADBADNOTGOOD de outros grupos do meio artístico a que pertencem, é a facilidade com que se relacionam com as personalidades mais famosas da cultura pop. Na música, tratam por «tu» Tyler, The Creator, Frank Ocean, Earl Sweatshirt, Joey Badass, Kendrick Lamar, Kid Cudi, KAYTRANADA, Bonobo, Roy Ayers; na moda, Virgil Abloh. Os membros de BADBADNOTGOOD são os cool kids in town independentemente do contexto em que se encontrem, e contactam tanto com figuras musicais contemporâneas, como de décadas anteriores. (Ainda no mês passado, por exemplo, a seguir à Met Gala, foram convidados para a after party de Abloh, onde ofereceram instrumentais a Cudi.)
Em dezembro de 2020, num programa da Worldwide FM, os BADBADNOTGOOD revelavam a Gilles Peterson a existência de um novo álbum de instrumentais. Talk Memory foi oficialmente anunciado em julho de 2021 e, de forma a assinalar o regresso do conjunto ao ativo, lançaram os singles “Signal From The Noise” e “Beside April”. O primeiro tema, que foi edificado a partir do género de produção predileto de Floating Points (o Buchla system), recebeu comentários positivos vindos da crítica devido ao comprimento da música e ao esforço audiovisual patente no respetivo videoclipe. O segundo single foi igualmente bem recebido visto que resulta de uma colaboração dos BADBADNOTGOOD com o mago Arthur Verocai e com o prodigioso Karriem Riggins.
O valor dos BADBADNOTGOOD reside, em parte, na facilidade com que colaboram com outros artistas. O percurso da banda comprova esse facto. Os dois primeiros álbuns, BBNG e BBNG 2, não são mais do que conjuntos de covers de canções de outras bandas e artistas. Só ao terceiro álbum (III), em 2014, é que os canadianos lançaram produções originais. Esta tendência pode querer dizer que a principal motivação do conjunto é fazer música, independentemente de contextos criativos. Em 2015, os BADBADNOTGOOD lançariam o seu quarto álbum, Sour Soul, com a participação do rapper Ghostface Killa e, mais uma vez, realizaram um trabalho diferente e inovador, desta feita assente num hip-hop cru e demolidor. Deste modo, fica-se com a ideia de que os BADBADNOTGOOD são um grupo híbrido que tira partido de vários habitats musicais. Provavelmente, é por essa razão que também são ostracizados do mundo do jazz.
Talk Memory reforça esta ideia. No novo disco, a musicalidade dos BADBADNOTGOOD volta a extravasar fronteiras jazz e o resultado final é impressionante – e viciante. Talk Memory não é um álbum de uma audição apenas, porque, ao longo de oito faixas, obriga a várias viagens em busca da total compreensão de todos os sons.
O início é estonteante. Talk Memory abre com “Signal From The Noise” e, durante nove minutos, os nossos ouvidos entram em êxtase. Trata-se de uma música intensa muito por culpa do já referido método de produção. A música iniciática acaba por ser a mais diferente de todo o álbum, sendo possível afirmar que funciona como um «desprender do passado»: os BADBADNOTGOOD só olham para diante e querem crescer. Depois de cinco anos de alterações profundas, esta é a maneira certa de enfrentar a vida e arte. Em “Signal From The Noise”, ouvidos diferentes ouvem música diferente: há quem identifique passagens de Zappa, King Crimson ou Funkadelic. No geral, falamos de um tema nostálgico e escuro, que denota alguma raiva. É música de vilão autenticamente – GhostFace Killah pode entrar a qualquer momento.
Mas, de um momento para o outro, tudo muda. O imaginário presente nas restantes canções de Talk Memory não podia ser mais diferente. Em “Unfolding (Momentum 73)”, os BADBADNOTGOOD contam com o contributo do profeta Laraaji e constroem um mundo pacífico, onde suspiros de saxofone afastam nuvens brancas para dar lugar a um céu muito azul. Mas se esta é uma música de alívio, a seguinte (“City Of Mirrors”) é de desespero, comandada por um piano nervoso e por uma bateria intempestiva. É que, na cidade dos espelhos, é difícil distinguir a verdade da mentira.
Arthur Verocai continua connosco (o brasileiro só não está presente em dois momentos: em “Signal From The Noise” e “Timid, Intimidating”). A característica chave da música seguinte, “Beside April”, é o seu começo: faz lembrar o single “Goodbye Blue”. Outro grande traço é o uso de guitarras progressivas que, deixando qualquer coração acelerado, abrem caminho para o triunfo do jazz (ao minuto 02:20).
É difícil escolher a melhor produção de Talk Memory tendo em conta que todas as faixas são imaculadas. Ainda assim, “Love Proceeding” é especial. Estamos perante uma das melhores músicas do ano e o mérito pertence obviamente aos intérpretes. A faixa está muito bem integrada na produção (chega na altura certa) e liberta uma paz de espírito nunca antes identificada na musicalidade dos BADBADNOTGOOD. O uso de cordas é divinal, mas devemos focarmo-nos, mais uma vez, no poder do saxofone que, partindo a música ao meio, sustenta as incursões psicodélicas da guitarra de Verocai.
É impressionante a forma como os BADBADNOTGOOD gravam o seu cunho pessoal nas produções em que trabalham. Em todas as fases de Talk Memory temos a certeza de que escutamos um álbum dos canadianos BADBADNOTGOOD; o som não engana. Dito isto, a sexta faixa, “Timid, Intimidating” podia perfeitamente figurar em III ou em IV – até porque o título do tema parece pertencer a um desses imaginários.
Perto do fim, somos presenteados com um reprise de “Beside April”. Nunca Toronto esteve tão perto do Brasil. É a representação musical de uma folha de plátano azul com a frase “Ordem E Progresso” inscrita.
Talk Memory chega ao fim com “Talk Meaning”. A derradeira faixa tem pouco mais do que seis minutos e forma um dos momentos mais sinfónicos da produção: “Talk Meaning” é uma experiência de big band. Aqui, os BADBADNOTGOOD trabalharam com dois grandes nomes do atual circuito jazz (o produtor Terrace Martin e a harpista Brandee Younger) e, claro, com o velho Verocai. No entanto, os últimos momentos de “Talk Meaning”, e por isso de Talk Memory, são todos de Younger, que fecha a produção com uma varinha de condão. No início, durante “Signal From The Noise”, ninguém diria que este pudesse ser o fim do álbum, mas não há Lei no mundo da música.
Os BADBADNOTGOOD mudaram de face num curto espaço de tempo. São agora um conjunto mais maduro, com mais certezas, mas igualmente inventivo. A verdade é que o tempo passa, as pessoas crescem e procuram novos desafios. Ainda que se tenham aproximado de um modelo mais jazzístico com Talk Memory, os BADBADNOTGOOD continuam a ser um grupo formado por miúdos goofy que estão felizes a fazer covers de temas de videojogos. Em Talk Memory, há menos hip-hop e R&B, mas a marca BADBADNOTGOOD continua bem patente. É o registo mais sério do conjunto canadiano, sendo também o projeto onde as suas influências são mais visíveis: há lições de Pharoah Sanders por toda a parte, por exemplo.
Talk Memory é, até à data, o melhor trabalho dos BADBADNOTGOOD. É também o mais complexo e «adulto». Os miúdos de Toronto cresceram, adaptaram-se a um novo contexto grupal, mudaram de editora (é o primeiro álbum com a XL Recordings) e, no fim, triunfaram. 2021 também pertence aos BADBADNOTGOOD
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