Ao seu segundo disco a solo, Paul McCartney lança as bases para aquele que viria a ser o seu futuro som com os Wings. RAM, mal recebido na altura, é uma belíssima colecção de canções, vindas de quem ainda sofria bastante com a ruptura dos Beatles.
A crítica especializada foi bastante dura com Paul McCartney no seu início de carreira a solo. Para a maioria das publicações internacionais, o baixista da maior banda de sempre estava a espalhar-se ao comprido desde a separação dos Beatles. Enquanto Lennon, Harrison e até Ringo recebiam elogios das suas estreias a solo, McCartney era ridicularizado. O seu primeiro disco, homónimo, foi vítima do tempo que se vivia. Apesar de Lennon ter dito aos restantes membros que iria abandonar os Beatles, todos os outros concordaram em deixar o assunto em segredo para não criar ondas de choque desnecessárias, até porque ainda estava para ser editado Let It Be. Deprimido e angustiado, Paul refugiu-se na sua quinta, na Escócia, e começou a criar aquele que hoje muitos consideram, ser o primeiro álbum DIY da pop. Tendo a necessidade de o lançar de imediato, McCartney entrou em choque com Harrison e Ringo, que queriam que este saísse após Let It Be. Paul não aceitou e revelou ao mundo que iria abandonar os Beatles. As tais ondas de choque não tardaram em sentir-se mas, curiosamente, quem foi o mais atingido foi o próprio Paul McCartney. Acusado de ter dado a machadada final nos Fab Four, Paul viu a imprensa rasgar de alto a baixo o seu novo trabalho, acusando-o de ter sido pouco profissional ao lançar canções mal produzidas e inacabadas, apesar dos elogios a “Maybe I’m Amazed”.
Hoje em dia, McCartney é visto por outro prisma e é bastante elogiado, sendo mesmo considerado um dos seus melhores trabalhos. RAM acabaria por sofrer do mesmo efeito pós-Beatles, apesar de Paul ter tentado contrariar a crítica ao enveredar por uma produção mais cuidada do que tinha feito no seu disco anterior. A própria Linda McCartney fez audições para contratar guitarristas e baterista. No entanto, nem isso lhe valeu, pois se não era por uma razão, haveria de ser por outra. À altura, John Landau, da Rolling Stone, achou-o incrivelmente inconsequente e monumentalmente irrelevante, acusando de falta de intensidade e energia. Mais, acusou McCartney de ter beneficiado largamente da colaboração com os Beatles, especialmente Lennon, que, segundo Landau, impedia a música dos Beatles de se tornar vazia e desinteressante. Landau não estava sozinho nas críticas. A grande maioria das publicações pisava violentamente o álbum de McCartney e, imagine-se, até Ringo Starr sentia pena do seu ex-companheiro, revelando que não tinha ouvido uma única música de qualidade nos seus discos a solo. John Lennon detestou o RAM, musicando a sua opinião em “How Do You Sleep” – “The only thing you done was yesterday e “the sound you make is muzak to my ears”, entre outras bicadas. Estas eram palavras duras, mas Lennon não se ficava por aí, ridicularizando o seu parceiro de uma vida na contracapa de Imagine, com uma foto com um porco em jeito de paródia à capa de RAM.
Foi, realmente, bastante interessante este início de fase dos membros dos Beatles. Como qualquer divórcio não desejado por todas as partes, há sempre alguém que sai magoado. McCartney, apesar de ter oficializado a separação, sempre foi contra essa decisão. Na sua cabeça, os Beatles poderiam ter continuado a gravar durante muito mais tempo, como se pode constatar no último documentário sobre a banda, “Get Back”. Lennon, na sua fase junkie, estava, basicamente, dependente de duas coisas – heroína e Yoko Ono – não estando realmente interessado em muita coisa. Ia atrás de Paul e consequente futuro dos Beatles, mas sem grande entusiasmo. Ringo Starr nunca foi um problema, pelo que a decisão nunca passaria por aí, apesar de ter sido o primeiro Beatle a abandonar a banda, em 1968, alegando falta de amor dos restantes. Quem há muito estava farto do seu lugar habitual era George Harrison, já com bastantes canções para lançar e sem espaço para elas. Daí, após este “divórcio”, Paul foi o que saiu mais magoado com a situação e não se escusou de o confirmar nas suas músicas. “Too Many People”, canção que abre RAM, tem ataques a Lennon e Yoko: “Too many people preaching practices” ou “You took your lucky break and broke it in two”. Também Ringo e Harrison achavam que a canção era um ataque a eles. Apesar desta acrimónia, a canção é boa, com todas as virtudes e defeitos que fazem os discos de McCartney serem como são.
O disco, composto por 14 canções, lança as bases do som que McCartney viria a trazer com os Wings. Com Linda a seu lado, numa versão soft de Lennon e Yoko, Paul traz-nos canções meio tolas, mas vibrantes (“Three Legs”, “Smile Away”), outras muito bonitas como “Dear Boy”, numa clara homenagem a Brian Wilson, com as suas camadas, coros e produção envolvente; “Ram On” ou “Heart of the Country”, canções de influência folk, ou as cobertas de açúcar (“Uncle Albert/Admiral Halsey”, primeiro número 1 de McCartney nos Estados Unidos da América e “The Back Seat Of My Car”, uma belíssima balada ao piano.
Intervalando o disco entre sugestões de refeições caseiras (“Eat At Home”) ou brincando com a entoação das palavras, numa canção ligeiramente pesada para a sua letra, contando ainda com a voz de Heather, filha de Linda (“Monkberry Moon Delight”), Paul McCartney foi um pouco a todo o lado, não tendo os outros Beatles para lhe impedirem a sua fértil imaginação e composição. Destas sessões, sairia “Another Day”, uma canção fabulosa. Outro exemplo de como os Beatles lançavam singles de sucesso sem os incluir em discos.
Tal como o primeiro disco a solo, RAM não deveria envergonhar o que músico fez para trás com a sua antiga banda. Paul tem uma sensibilidade pop como poucos, como é fácil constatar pelo seu repertório. No entanto, com o passar do tempo, sem o travão do seu antigo parceiro ou o sentido mais místico de Harrison, o baixista acabaria por se tornar cada vez menos influente e relevante, embora nunca perdendo a sua capacidade estar no topo.
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