Porto, Porto
Sérgio Godinho
Vindo deste Vigo ao Porto
sem mala nem passaporte
o comboio era tão velho
que o fumo cheirava a morte
Pela manhã vi-me em S. Bento
tinha os olhos mal dormidos
estava na rua um silêncio
daqueles de abrir ouvidos
Quando de repente o estrondo
duma esplosão fabulosa
me atirou quase por terra
à esquina da Carvalhosa
Vi um fumo no horizonte
tomei o trolley p´ra Baixa
desci depois do Palácio
e fui deparar com um graxa
- Olá, como está, disse eu
- Eu bem, e vocemecê
- De onde é que vem este fumo?
- Do Inferno, então não vê?
E em geito de despedida
disse "O meu nome é Duarte,
se vir por aí o diabo
diga que vem da minha parte"
Lá fui andando para o fumo
que agora era quase branco
quando dei com um surdo-mudo
com um letreiro escrito "Manco"
Perguntei-lhe pelo estrondo
respondeu "mudo não fala"
a viagem ia ser grande
decidi comprar uma mala
Entrei dentro dum quiosque
dirigi-me ao jornaleiro
mordeu-me e o sangue espirrou
nas notícias de Janeiro
A descer a Boavista
surgiram três atletas
um piloto, outro ciclista
e o outro pintava as metas
Perguntei se o estrondo vinha
lá das bandas de Leixões
responderam "ao passarmos
só ouvimos ovações"
Vi ao olhar da janela
dois carros feitos num feixe
"se alguma janela aberta o incomada
peça ao condutor que a feche"
Lá nos degraus do mercado
vi três senhoras em prantos
cobrindo o rosto com véus
e o corpo com negros mantos
Pensei, devem ter perdido
pai, marido ou companheiros
responderam "qual marido?,
quem perdeu foi o Salgueiros"
Sem mais notícias do estrondo
fui comprar mais uma mala
não sabia o que pôr dentro
fui para o Douro lavá-la
Estava meio vazo de água
sem ninguém nas redondezas
mas assim que mergulhei
perdi-me nas profundezas
Voltei à tona molhado
Gritei "Eh povo! Eh povo!
Aquela explosão tão grande
era da casca dum ovo!"
Lá de dentro veio um pinto
saíu e disse "sou eu"
"Então eu que já nasci
e o galo ainda não morreu?"
Dizem que os pintos não voam
este voou sobre as casas
os que não voam não querem
ou lhes cortaram as asas
Dizem que os pintos não voam
este voou sobre as casas
os que não voam não querem
ou lhes cortaram as asas
Quatro Quadras Soltas
Sérgio Godinho
Eu vi quatro quadras soltas
À solta lá numa herdade
Amarrei-as com uma corda
E carreguei-as para cidade
Cheguei com elas a um largo
E logo ao largo se puseram
Foram ter com a família
E com os amigos que ainda o eram
Viram fados, viram viras
Viram canções de revolta
E encontraram bons amigos
Em mais que uma quadra solta
Uma viu um livro chamado
"Este livro que vos deixo"
E reviu velhas amizades
Eram quadras do Aleixo
Ó I ó ai, Há já menos quem se encolha
Ó I ó ai, Muita gente fala e canta
Ó I ó ai, Já se vai soltando a rolha
Que nos tapava a garganta
Ora bem, tinha marcado
Encontro com as quadras soltas
Pois sim, fiquei pendurado
Como um tolo ali às voltas
Chegou uma e disse: Andei
A cumprimentar parentes
E eu aqui a enxotar moscas
Vocês são mesmo indecentes
Respondeu-me: Ó patrãozinho
Desculpe lá essa seca
Estive a beber um copito
Com uma quadra do Zeca
Ó I ó ai, Disse-me um dia um careca
Ó I ó ai, Quando uma cobra tem sede
Ó I ó ai, Corta-lhe logo a cabeça
Encosta-a bem à parede
Das restantes quadras soltas
Não tinha sequer notícia
Dirigi-me a uma esquadra
E descrevi-as a um polícia
Respondeu-me: Com efeito
Nós temos aqui retida
Uma quadra sem papéis
Que encontramos na má vida
Diz que é uma quadra oral
Sem identificação
Que uma quadra popular
Não precisa de cartão
Se diz que pertence ao povo
O povo que venha cá
Que eu quero ver a licença
O registo e o alvará
Ó I ó ai, Quando se embebeda o pobre
Ó I ó ai, Dizem, olha o borrachão
Ó I ó ai, Quando se emborracha o rico
Acham graça ao figurão
Fui com a quadra popular
À procura da restante
Quando o polícia de longe
Disse: Venha aqui um instante
Temos aqui uma outra
Não sei se você conhece
Desrespeita autoridades
E diz o que lhe apetece
Tem uma rima forçada
E palavras estrangeiras
E semeia a confusão
Entre as outras prisioneiras
Se for sua, leve-a já
Que é pior que erva daninha
Olhe bem para ela: É sua?
Olhei bem para ela: É minha!
Ó I ó ai, Nós queremos é justiça
Ó I ó ai, E dinheiro para o bife
Ó I ó ai, E não esta cóboiada
Em que é tudo do sherife
Até ver!
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