domingo, 25 de dezembro de 2022

POEMAS CANTADOS DE SERGIO GODINHO


 Porto, Porto

Sérgio Godinho

 

Vindo deste Vigo ao Porto

sem mala nem passaporte

o comboio era tão velho

que o fumo cheirava a morte


Pela manhã vi-me em S. Bento

tinha os olhos mal dormidos

estava na rua um silêncio

daqueles de abrir ouvidos


Quando de repente o estrondo

duma esplosão fabulosa

me atirou quase por terra

à esquina da Carvalhosa


Vi um fumo no horizonte

tomei o trolley p´ra Baixa

desci depois do Palácio

e fui deparar com um graxa


- Olá, como está, disse eu

- Eu bem, e vocemecê

- De onde é que vem este fumo?

- Do Inferno, então não vê?


E em geito de despedida

disse "O meu nome é Duarte,

se vir por aí o diabo

diga que vem da minha parte"


Lá fui andando para o fumo

que agora era quase branco

quando dei com um surdo-mudo

com um letreiro escrito "Manco"


Perguntei-lhe pelo estrondo

respondeu "mudo não fala"

a viagem ia ser grande

decidi comprar uma mala


Entrei dentro dum quiosque

dirigi-me ao jornaleiro

mordeu-me e o sangue espirrou

nas notícias de Janeiro


A descer a Boavista

surgiram três atletas

um piloto, outro ciclista

e o outro pintava as metas


Perguntei se o estrondo vinha

lá das bandas de Leixões

responderam "ao passarmos

só ouvimos ovações"


Vi ao olhar da janela

dois carros feitos num feixe

"se alguma janela aberta o incomada

peça ao condutor que a feche"


Lá nos degraus do mercado

vi três senhoras em prantos

cobrindo o rosto com véus

e o corpo com negros mantos


Pensei, devem ter perdido

pai, marido ou companheiros

responderam "qual marido?,

quem perdeu foi o Salgueiros"


Sem mais notícias do estrondo

fui comprar mais uma mala

não sabia o que pôr dentro

fui para o Douro lavá-la


Estava meio vazo de água

sem ninguém nas redondezas

mas assim que mergulhei

perdi-me nas profundezas


Voltei à tona molhado

Gritei "Eh povo! Eh povo!

Aquela explosão tão grande

era da casca dum ovo!"


Lá de dentro veio um pinto

saíu e disse "sou eu"

"Então eu que já nasci

e o galo ainda não morreu?"


Dizem que os pintos não voam

este voou sobre as casas

os que não voam não querem

ou lhes cortaram as asas


Dizem que os pintos não voam

este voou sobre as casas

os que não voam não querem

ou lhes cortaram as asas


Quatro Quadras Soltas

Sérgio Godinho


Eu vi quatro quadras soltas

À solta lá numa herdade

Amarrei-as com uma corda

E carreguei-as para cidade


Cheguei com elas a um largo

E logo ao largo se puseram

Foram ter com a família

E com os amigos que ainda o eram


Viram fados, viram viras

Viram canções de revolta

E encontraram bons amigos

Em mais que uma quadra solta


Uma viu um livro chamado

"Este livro que vos deixo"

E reviu velhas amizades

Eram quadras do Aleixo


Ó I ó ai, Há já menos quem se encolha

Ó I ó ai, Muita gente fala e canta

Ó I ó ai, Já se vai soltando a rolha

Que nos tapava a garganta


Ora bem, tinha marcado

Encontro com as quadras soltas

Pois sim, fiquei pendurado

Como um tolo ali às voltas


Chegou uma e disse: Andei

A cumprimentar parentes

E eu aqui a enxotar moscas

Vocês são mesmo indecentes


Respondeu-me: Ó patrãozinho

Desculpe lá essa seca

Estive a beber um copito

Com uma quadra do Zeca


Ó I ó ai, Disse-me um dia um careca

Ó I ó ai, Quando uma cobra tem sede

Ó I ó ai, Corta-lhe logo a cabeça

Encosta-a bem à parede


Das restantes quadras soltas

Não tinha sequer notícia

Dirigi-me a uma esquadra

E descrevi-as a um polícia


Respondeu-me: Com efeito

Nós temos aqui retida

Uma quadra sem papéis

Que encontramos na má vida


Diz que é uma quadra oral

Sem identificação

Que uma quadra popular

Não precisa de cartão


Se diz que pertence ao povo

O povo que venha cá

Que eu quero ver a licença

O registo e o alvará


Ó I ó ai, Quando se embebeda o pobre

Ó I ó ai, Dizem, olha o borrachão

Ó I ó ai, Quando se emborracha o rico

Acham graça ao figurão


Fui com a quadra popular

À procura da restante

Quando o polícia de longe

Disse: Venha aqui um instante


Temos aqui uma outra

Não sei se você conhece

Desrespeita autoridades

E diz o que lhe apetece


Tem uma rima forçada

E palavras estrangeiras

E semeia a confusão

Entre as outras prisioneiras


Se for sua, leve-a já

Que é pior que erva daninha

Olhe bem para ela: É sua?

Olhei bem para ela: É minha!


Ó I ó ai, Nós queremos é justiça

Ó I ó ai, E dinheiro para o bife

Ó I ó ai, E não esta cóboiada

Em que é tudo do sherife


Até ver!

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