Tread é um álbum de memórias. Em pouco mais de 50 minutos, Ross From Friends é capaz de representar musicalmente pedaços da sua vida em South London. Todas as faixas fazem parte de um mundo partilhado, em que a felicidade, a melancolia e juventude se fundem num só elemento ordenador.
O mundo está cada vez mais dependente das novas tecnologias. A cada dia que passa, os vetores analógicos perdem preponderância e as forças eletrónicas atuam com mais intensidade na vida das pessoas e nas experiências da sociedade. Hoje em dia, (quase) tudo é eletrónico e automático. À partida, esta experiência levaria a que as nossas vidas fossem mais espontâneas e criativas, mas não é o que acontece. Das novas tecnologias surgem incontáveis benesses práticas, no entanto, ao fim de um determinado período de tempo, sentimo-nos presos a elas e os seus mecanismos insípidos travam a nossa busca pela criatividade.
Se, um dia, Felix Clary Weatherall (also known as Ross From Friends) ler esta crítica, estou certo de que vai concordar com a ideia apresentada no início do texto. Após, em 2018, ter produzido o seu primeiro disco de longa-duração, Family Portrait, e de, em 2019, ter lançado o EP Epiphany, Ross From Friends deu por si farto de criar música eletrónica a partir de simples e restritivos comandos de computador. Por isso, desenvolveu uma tecnologia própria (a Max For Live) que lhe permitiu criar sonoridades originais, experimentais e paralelamente automatizadas. Depois de ter passado os últimos anos a recolher e a gravar os sons que lhe iam surgindo pelo caminho, entre rotinas, concertos e sessões passadas no estúdio, Ross decidiu colocá-los na plataforma e foi realizando o esboço daquilo que viria a ser Tread. Disclaimer: é bastante complicado explicar este estilo de produção. No entanto, é fulcral interiorizar que Tread é muito mais do que um álbum: é um método, que tem tanto de científico, como de criativo.
(Se quiserem perceber como é que Felix esculpiu este álbum, dêem uma vista de olhos neste vídeo, partilhado pelo próprio no Instagram.)
Tendo sido lançado no fim de outubro, Tread é a segunda oferta de Ross From Friends à editora de Flying Lotus, a Brainfeeder. Para os aficionados do género eletrónico, este era um dos lançamentos mais aguardados do ano — e Ross não desiludiu. Estamos perante aquele que é, certamente, o melhor trabalho do artista inglês até à data: não só porque as influências estão escarrapachadas (há apontamentos de Bicep, Burial, Boards Of Canada e Caribou por todo o lado), mas sobretudo porque Ross aprimorou o seu som, ao mesmo tempo que respeitou a sua própria assinatura. Está claro que a musicalidade de Ross From Friends está mais característica do que nunca.
Em Tread, não conhecemos nenhum hino de house lo-fi como “Talk To Me You’ll Understand” (2016), nem nos cruzamos com gritos tecno como “Thank God I’m A Lizard” (2018), mas somos introduzidos a um conjunto de doze temas eletrónicos que despertam em nós das duas uma: ou passos de dança frenéticos ou lágrimas de melancolia. É essa a grande vantagem da música eletrónica — dispõe de uma facilidade enorme em suscitar emoções na mente do ouvinte; o mesmo acontece com a música ambiente. A partir do momento em que os nossos ouvidos se desprendem de palavras cantadas, as possibilidades de interpretação são ilimitadas e as sonoridades elétricas revisitam as nossas próprias experiências de vida.
Tread é um álbum de memórias. Em pouco mais de 50 minutos, Ross From Friends é capaz de representar musicalmente pedaços da sua vida em South London. Todas as faixas fazem parte de um mundo partilhado, em que a felicidade, a melancolia e juventude se fundem num só elemento ordenador. Por essa razão, há músicas para tudo. Se “The Daisy”, “Love Divide”, “XXX Olympiad” e “Life In Mind” partem qualquer pista de dança, “Brand New Start” e “Morning Sun In A Dusty Room” devem ser escutadas religiosamente no início de cada manhã de outono, porque têm o poder de aquecer o primeiro café da manhã.
Ainda há muita desconfiança em relação a produtores eletrónicos. Felizmente, o paradigma está a mudar. Nos últimos anos, artistas pertencentes a este ramo musical têm ganho cada vez mais notoriedade: o sucesso de Four Tet, Floating Points ou Jon Hopkins comprova o crescente reconhecimento que tem sido dado ao universo eletrónico. Em 2021, artistas como Ross From Friends e trabalhos como Tread revelam um futuro ainda mais risonho para o género musical que nos faz dançar, faz esquecer, faz viver.
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