É impressionante pensar nisso, mas nos últimos anos, sempre achei que a inevitável aposentadoria de Bob Dylan finalmente havia chegado, ainda mais depois da sequência de discos de crooner que ele lançou nos últimos anos. Bem, ledo e tolo engano meu, o famoso “queimei a língua”, afinal, o mestre retorna agora em 2020 com um novo álbum, batizado de “Rough and Rowdy Ways” (o primeiro de inéditas desde o ótimo “Tempest” de 2012). O título é uma referência a “My Rough And Rowdy Ways” (1960), obra póstuma de Jimmie Rodgers, lendário músico de Country Music. Neste novíssimo trabalho, Bob Dylan joga na nossa cara a comprovação de um grande fato: Nunca devemos subestimar um gênio, por mais que este pareça estar em um momento mais “acomodado”, pois aqui, Dylan nos entrega uma obra linda, poética e de uma vitalidade incrível, que com certeza, tem tudo para agradar até os seus fãs mais radicais.
Na realidade, desde o excelente “Time Out Of Mind” (1997), Bob emendou uma espetacular sequência de discos, sendo que alguns deles podem ser considerados como os melhores de sua vasta e genial carreira, afinal, se qualquer novo artista surgisse com uma série de álbuns assim, hoje em dia já seria super aclamado e considerado muito relevante para a cena da música mundial.
Ouvir um disco do Bob Dylan, pelo menos na minha humilde opinião, é sempre um exercício de reflexão e dedicação máxima. Seus álbuns sempre provocam essa sensação em mim e simplesmente me permito em parar com tudo o que estiver fazendo quando me comprometo a ouvir qualquer trabalho autoral do poeta, e isso se acentua ainda mais quando se trata de um lançamento, e foi exatamente assim a minha experiência com “Rough and Rowdy Ways”.
Logo no início, fui arrebatado com as cinco primeiras canções do disco, na qual se tornou o meu momento favorito do álbum. A abertura com a maravilhosa “I Contain Multitudes”, um lindíssimo Folk com referências a Rolling Stones e Edgar Allan Poe, já é de arrepiar até os ossos. “False Prophet” é um daqueles Bluesão “safados” que só ele é capaz de fazer, e conta com um dos melhores riffs de guitarra de seu repertório, lembrando que normalmente as músicas de Dylan não possuem riff ou solo. PS: o vocal dele também está fantástico nesta faixa, digno de um legítimo Bluesmen. O R&B/Doo-wop de “My Own Version Of You”, apresenta um Dylan cientista maluco que tenta, assim como Dr. Frankenstein, construir uma versão humana artificial, em contraste a um mundo confuso e perigoso. “I’ll take the ‘Scarface’ Pacino and the ‘Godfather’ Brando, Mix ‘em up in a tank and get a robot commando”, diz o poeta, em uma de muitas tiradas hilárias espalhadas por seus versos, resultando em um dos momentos mais geniais do disco. “I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You” é simplesmente a parte mais sublime da obra pra mim, com uma melodia extremamente tocante, letra emocionante e uma interpretação vocal sinceramente profunda, enquanto que “Black Rider” é de uma beleza meio sombria e hipnótica, é daquelas músicas ideais pra se ouvir no escuro e se concentrar com atenção em cada elemento do arranjo e da história contada na letra.
A seguir, com outro Blues estupendo em “Goodbye Jimmy Reed”, ele agradece ao lendário músico e um dos pioneiros do Rock And Roll, em ter lhe proporcionado uma verdadeira religião para sua vida. “Mother Of Muses” é outro momento inspiradíssimo, uma linda faixa Gospel de uma beleza melódica sem igual, onde a voz de Bob soa melhor do que nunca, de uma elegância com muita candura e classe. Com certeza a experiência de ter gravado três discos de standards de Vocal Jazz entre 2015 e 2017, serviu-lhe de laboratório para encontrar um lugar mais adequado à sua voz com um instrumental mais minimalista (daí podemos constatar também, que até os maiores gênios estão sempre se colocando a disposição para novos aprendizados). Em “Crossing the Rubicon”, Dylan usa mais uma vez de forma muito eficiente a abordagem e a linguagem do Blues tradicional para contar uma história incrivelmente instigante. Em forma de metáfora, Bob nos diz que Cruzar o Rubicão, o rio que servia de fronteira entre o território de Roma e a província de Gália, que Júlio César cruzou para enfrentar a República, significa dar um passo decisivo e assumir riscos em meio a tempos apocalípticos. O disco chega a sua reta final com a apoteótica “Murder Must Foul”, uma linda peça Folk orquestral de quase 17 minutos, que Dylan relata resumidamente sua vida, o século XX, chegando até ao assassinato de John F. Kennedy e ainda com referências a Beatles, The Who, Woodstock, guerra do Vietnã e muito mais. Me pouparei do trabalho de comentar mais sobre esta já icônica canção, pois ela já foi lindamente resenhada aqui nesta página pelo querido Caio.
Em considerações finais, “Rough and Rowdy Ways”, musicalmente falando, é provavelmente o mais belo disco de Bob Dylan desde “Modern Times” (2006). Aqui, Bob nos conduz em uma linda e profunda viagem sonora pelos Estados Unidos através de canções épicas enraizadas na tradição do cancioneiro popular americano, atuando como uma espécie de caleidoscópio ambulante do Folk, do Blues Rock e do Gospel com a maestria de sempre. Em termos líricos, trata-se provavelmente do ápice da produção que Bob entregou ao mundo nos últimos 20 anos. O mestre que foi merecidamente honrado com o prêmio Nobel de Literatura, demonstra que está cada vez mais inspirado e afiado em seu principal ofício, com letras altamente inspiradas e muito bem escritas com um texto incrível. A forma como ele traduz a inevitabilidade da morte, a decadência e a corrupção do espírito humano e ao mesmo tempo, a capacidade de ascensão que a humanidade possui, é digna de receber os melhores aplausos e adjetivos de tão bem elaboradas. Em toda a obra, as referências são muitas e todas muito bem encaixadas. De Shakespeare, Howlin’ Wolf, Jimmy Reed, Edgar Allan Poe e também citações de seus antigos heróis pessoais como Elvis Presley e Buddy Holly, até lendas contemporâneas ao próprio Dylan, como Beatles, Rolling Stones e The Who, passando por nomes icônicos da cultura do século XX como Anne Frank, Freud, Marx e Martin Luther King e até mesmo mitos cinematográficos como Al Pacino e Marlon Brando. Sem mencionar o poeta Walt Whitman, na qual vejo como sendo provavelmente a maior influência literária por trás de todo o projeto, pois aqui, assim como Walt fez de sua principal obra “Folhas de Relva”, um caminho para escrever sobre a Nova América, em “Rough and Rowdy Ways”, Dylan utiliza de semelhante abordagem para cantar sobre o passado mas também sobre seus receios sobre o futuro de sua terra natal.
“Rough and Rowdy Ways” tem tudo para se tornar um disco clássico da longa e rica discografia do velho bardo e também de virar uma obra que envelhecerá muito bem conforme os anos passarem. Se isso irá mesmo acontecer, só o tempo nos dirá, mas avaliando sob a perspectiva atual e com uma ótica do presente, com certeza é um álbum que merece figurar entre os melhores lançamentos do ano. Espero muito que “Rough and Rowdy Ways” se torne um marco na trajetória do velho trovador do Folk, afinal, o nosso mestre Zimmerman muito merece depois de tantos serviços prestados a humanidade com sua maravilhosa, mega influente e impactante arte.
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