quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

“Brasil” (Eldorado/Roadrunner, 1989), Ratos de Porão

 


O ano era 1989, o último ano de governo do presidente do Brasil à época, José Sarney, o primeiro presidente civil após vinte anos de ditadura militar (1964-1985). Na verdade, o presidente era para ter sido Tancredo Neves, eleito indiretamente no colégio eleitoral 1985, derrotando Paulo Maluf (o preferido dos militares). Em abril de 1985, Tancredo morreu após complicações de uma cirurgia. Sarney, que era o seu vice na chapa de candidatura, assumiu o cargo. O governo de Sarney foi marcado pelo caos econômico, em planos econômicos não conseguiram combater a hiperinflação galopante (uma herança dos governos militares), que só agravava o abismo social entre uma maioria pobre e um minoria de afortunados.

Naquele mesmo ano, aconteceu a primeira eleição direta para presidente da república após o fim da ditadura. Após quase trinta, o povo brasileiro voltou a escolher um presidente da república, alfo que não acontecia desde 1960. O candidato vencedor foi Fernando Collor de Mello, ex-governador de Alagoas, jovem, cara de galã de novela, e que prometia acabar com a corrupção, coisa que não só ele não conseguiu, como acabaria sendo deposto em 1992 por processo de impeachtment.

Foi num cenário caótico como esse que a banda Ratos de Porão lançou em 1989 o seu quarto álbum de estúdio, Brasil, um disco que por meio das suas dezoito faixas, fazia uma radiografia da triste realidade social e política do Brasil. O álbum foi um divisor de águas na carreira da banda paulista. O álbum retratava a realidade social brasileira de 1989, em que os versos fortes e diretas das canções foram embaladas por uma sonoridade pesada e agressiva, em que os Ratos de Porão se mostravam completamente comprometidos com o crossover thrash, uma tendência musical que estava em ascensão no final dos anos 1980 em que bandas punks e de hardcore flertavam com o thrash metal.

Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto
após a ditadura militar.

Mas essa mudança sonora no trabalho dos Ratos de Porão não aconteceu de uma hora para outra ou de um disco para o outro. A banda já havia escrito o seu nome na história do punk rock brasileiro, tornou-se um dos nomes mais importantes do estilo no Brasil. No entanto, já no seu segundo álbum de estúdio, Descanse Em Paz (1986), os Ratos de Porão já davam sinais de uma aproximação com o crossover thrash. Os membros da banda já estavam ouvindo grupos de crossover thrash como S.O.D, Discharge e Broken Bones.

Em 1987, essa aproximação dos Ratos de Porão com o crossover thrash se torna mais intensa com o disco Cada Dia Mais Sujo e Agressivo, lançado pelo selo de Belo Horizonte, Cogumelo Records, o que na época, tinha a banda Sepultura no seu cast. Aliás, foi a partir daí que nasceu a amizade entre as duas bandas, e o que de uma certa forma, contribuiu no processo de transformação musical no som dos Ratos de Porão.

Em 1988, a banda Ratos de Porão assina contrato com a gravadora Eldorado, e compôs material novo para o próximo disco. Por indicação de Igor Cavalera, então baterista do Sepultura, os Ratos de Porão firmaram um acordo com gravadora independente holandesa Roadrunner para a distribuição dos discos da banda paulista no mercado europeu e americano. No Brasil, os discos dos Ratos continuariam sob a responsabilidade da gravadora Eldorado. Por volta de maio de 1989, os Ratos de Porão partiram para a Alemanha, onde iriam começar uma pequena série apresentações naquele país e na Holanda. Os Ratos de Porão aproveitaram a ocasião para gravar, em Berlim, o álbum Brasil, no estúdio Music Lab, sob a produção de John Harris, um dos mais conceituados produtores independentes de heavy metal. Até aquele momento, Harris já havia produzido discos de bandas como Voivod, Helloween, Sodom, Tankard entre outras.

Uma curiosidade, é que para cumprir o acordo firmado com a Roadrunner, os Ratos de Porão gravaram uma versão em inglês do disco Brasil. Ou seja, durante a estadia da banda em Berlim, a banda gravou duas versões de Brasil, uma em português para o mercado brasileiro e uma versão em inglês para o mercado europeu e americano. As gravações em inglês foram meio sacrificantes para João Gordo já que ele não tinha domínio do idioma.

Lançado no segundo semestre de 1989, Brasil traz o som dos Ratos de Porão mais pesado, brutal e agressivo e com uma produção melhor apurada que os álbuns anteriores. O papel de John Harris foi fundamental para que a banda alcançasse esse nível qualidade. Harris é conhecido pelo seu profissionalismo e por ser um produtor bastante exigente.

A capa do álbum foi ilustrada pelo cartunista brasileiro Francisco Marcatti, é bem condizente com o conteúdo das letras das músicas disco, a miséria, corrupção, exploração religiosa entre outros temas tão espinhosos.

Embora tenha dezoito faixas, audição do álbum transcorre em pouco mais de 28 minutos. Todas as canções têm curta duração, sendo a faixa “Beber Até Morrer” a mais “longa”: 2 minutos e 20 segundos.

Ratos de Porão em 1989, da esquerda para a direita: João Gordo, Jão, Spaghetti e Jabá

O álbum começa com “Amazônia Nunca Mais” que aborda o descaso do governo brasileiro com a floresta amazônica. Nesta faixa, a banda alterna em alguns trechos um ritmo mais veloz e mais lento, mas mantendo o peso. A curiosidade nesta faixa é uma citação que a banda faz à ópera “O Guarani”, do maestro e compositor brasileiro erudito Carlos Gomes (1836-1896).

A ditadura militar já tinha acabado, mas na faixa “Retrocesso”, os Ratos de Porão alertavam sobre um possível dela ao poder: “Cuidado com o poder / Do regime militar / O tempo vai retroceder / E o DOI-CODI vai voltar no... / Brasil! Brasil! Brasil!”.  O velho lema “sexo, drogas e rock’n’roll” ganhou uma atualização sombria com os Ratos de Porão virando “AIDS, Pop, Repressão”, em que a banda emprega uma sutil levada rítmica que acena para o rap, mas com uma base de thrash metal.

Em “Lei do Silêncio”, os Ratos de Porão tratam sobre a ausência do poder em comunidades pobres das grandes cidades brasileiras, tornando esses lugares reféns da criminalidade eu impõe a “lei do silêncio”. A desobediência pode custar a própria vida.

“S.O.S. País Falido” traça o retrato de um Brasil mergulhado numa hiperinflação econômica em que a população desesperançada, encontra apoio na fé em Deus e um pouco de alegria com a Seleção Brasileira de futebol. “Gil Goma” é uma sátira ao repórter policial Gil Gomes (1940-2018), que fez muito sucesso no rádio e depois na TV fazendo reportagens em programas policiais.

“Beber Até Morrer” faz referência a pessoas que fazem uso do álcool de drogas para poder encarar os problemas da vida ou fugir deles. “Plano Furado II” é uma crítica debochada ao Plano Cruzado II, lançado pelo governo de José Sarney no final de 1986, uma tentativa de salvar o Plano Cruzado, lançado no início daquele mesmo ano. A nova tentativa fracassou e agravou o cenário econômico brasileiro no ano seguinte.

O lado 1 termina com “Heroína Suicida” que descreve o poder destrutivo da heroína: “Sinta as garras do pico assassino / Rasgando suas entranhas, traçando seu destino / Sinta a apatia dessa multidão / Caminhando insanamente rumo à destruição”.

A faixa "Plano Furado" é uma crítica ao Plano Cruzado II, mais um plano econômico
lançado pelo governo do presidente José Sarney (foto) para conter a
alta da inflação que não deu certo.

“Crianças Sem Futuro” abre o lado 2, um thrash metal cujo tema trata sobre o descaso dos governantes brasileiros com as crianças pobres, que não têm acesso a saúde, escola e a alimentação. A curtíssima “Farsa Nacionalista” é sobre o sujeito que é pobre, trabalha muito, ganha mal, mas se manifesta a favor dos poderoso endinheirados, uma clara demonstração de submissão e baixa autoestima.

A inclinação dos Ratos de Porão para o thrash metal gerou críticas por parte dos punk mais radicais que tacharam os membros da banda de “traidores”. O quarteto respondeu com o punk rock “Traidor”, uma música que começa com um som dedilhado de guitarra, e que logo dá lugar a um som pesado, veloz e furioso. “Porcos Sanguinários” é um hardcore na fronteira com o heavy metal que traça uma crítica à truculência policial.

O hardcore “Vida Animal” trata sobre o lado animalesco que algumas pessoas podem ter, capaz de cometer as maiores atrocidades, desde satisfazer-se com o sofrimento dos outros até assassinatos em série. A faixa seguinte, “O Fim”, é instrumental que começa muito bem com um som pesado e agressivo, mas que mais adiante é interrompida bruscamente, quando ouve-se uma confusão, vozes reclamando, cachorros latindo, e logo em seguida, o som é retomado no finalzinho da música, e desta em ritmo thrash metal.

“Máquina Militar” versa sobre o soldado que é tratado como um produto descartável pelas forças armadas de seu país, após voltar de uma guerra abalado psicologicamente ou mesmo mutilado. “Terra do Carnaval” fala da dívida externa do Brasil, miséria e de políticos corruptos. Mas na reta final da música, numa gota de esperança, a banda avisa a quem for eleito presidente que se quiser tirar o país do buraco, tem que acabar com a inflação e seguir seu mandado honestamente.

O disco termina com “Herança”, cujo tema destoa das outras faixas do álbum. A faixa trata sobre uma história trágica, um crime cometido por um homem que mata seus pais, sua irmã caçula e o seu irmão mais velho para se apropriar dos bens da família.

Brasil teve uma boa recepção por parte da imprensa tanto no Brasil como no exterior, especialmente na Europa onde foi lançada a versão em inglês. A produção muito cuidada do disco e a força brutal do som dos Ratos de Porão, levaram o álbum Brasil a receber elogios da revista inglesa Kerrang!. A boa impressão causada pelo disco no mercado de rock alternativo no exterior, rendeu uma nova turnê europeia em 1990, que passou pela Itália e Holanda. No mesmo ano, assim como fez com o álbum Brasil, a banda foi à Alemanha, e gravou o próximo álbum, Anarkophobia, no estúdio Music Lab, em Berlim, e com Harri Johns no comando da produção, e com duas versões, uma em português e outra em inglês. Anarkophobia foi lançado em 1991 e consolidou de vez o processo de transição musical dos Ratos de Porão assim como a própria carreira internacional da banda paulista, que se tornou uma realidade.

Faixas - Todas as faixas são escritas por Ratos de Porão.

Lado A 

1 - "Amazônia Nunca Mais"

2 - "Retrocesso"

3 - "Aids, Pop, Repressão"

4 - "Lei Do Silêncio"

5 - "S.O.S. Pais Falido"

6 - "Gil Goma"

7 - "Beber Até Morrer"

8 - "Plano Furado 2"

9 - "Heroína Suicida"

 

Lado B 

1 - "Crianças Sem Futuro"

2 - "Farsa Nacionalista"

3 - "Traidor"

4 - "Porcos Sanguinários"

5 - "Vida Animal"

6 - "O Fim"

7 - "Maquina Militar"

8 - "Terra Do Carnaval"

9 - "Herança"

 

Ratos de Porão: João Gordo (vocal), Jão (guitarra), Jabá (baixo) e Spaghetti (bateria). 


Ouça na íntegra o álbum Brasil

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