quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nick Cave and The Bad Seeds – From Her to Eternity (1984)

O álbum de estreia de Nick Cave and the Bad Seeds, From Her to Eternity, é uma pérola do pós-punk tardio: tenso, mórbido e teatral.

Nick Cave nunca foi seguidista. Já nos tempos dos Birthday Party, fazia questão em se demarcar dos dogmas do pós-punk. A abordagem dominante era cerebral, uma rejeição do romantismo rock’n’roll (PIL e Gang of Four são dois bons exemplos). O imaginário dos Birthday Party estava nas antípodas dessa assepsia quase científica, impregnando-se em mitologia bíblica (o pecado, o castigo, a salvação). Segunda divergência: onde o pós-punk recusa a música tradicional americana, os Birthday Party reinventam o blues outra vez.

Quando a festa de aniversário acaba em ’83, e Nick Cave renasce como artista a solo, a obsessão pelo Antigo Testamento e pela América profunda – bem como a dissonância anti-pop – persistem. Porém, os temas são agora mais lentos e depurados, abrindo espaço para um maior protagonismo das palavras. O estilo é narrativo, quase épico, com uma sofisticação literária inédita até então. Cave abre o disco com a claustrofóbica “Avalanche”, de Leonard Cohen, como se nos dissesse: fodei-vos, críticos e afins; meço-me apenas com os gigantes.

Como Nick não está preso à estrutura rígida do formato-canção, pode ser mais dramático e expressivo (a influência da teatralidade de Jim Morrison é notória).

Em “Cabin Fever!” quase que sentimos os salpicos do mar furioso derramando-se no convés e o capitão em delírio manuseando os rudes cabos (um navio à deriva como metáfora do amor!).

Na burlesca “Wings off Flies”, visualizamos de imediato um arlequim gozão e perverso arrancando asas a uma mosca como se fosse uma malmequer: “she loves me, she loves me not”… A slide guitar leva-nos para uma plantação de algodão no Mississippi.

A bateria-chicote de “Well of Misery” (enorme Mick Harvey!) remete-nos de novo para o sul profundo. A harmónica bluesy e dolente expressa o lamento do assassino (as mãos sujas com o sangue da mulher que ama). O jogo chamada/ resposta (Nick Cave chama, os Bad Seeds respondem) evoca o gospel e as canções de trabalho do deep south.

A canção-título é a mais pujante do álbum (ainda hoje, presença assídua nos alinhamentos dos concertos). “From Her to Eternity” fala do amor enquanto puro desejo, extinguindo-se logo que é consumado. O piano obsessivo e macabro espelha a descida à loucura do narrador (a mulher que ama no quarto de hotel acima, ele torturado com o desejo reprimido).

“Saint Huck” tem um travo igualmente hipnótico e demente, alimentando uma tensão cruel que nunca é resolvida. A melodia assobiada é psicótica e sinistra. A anti-guitarra de Blixa Bargeld parece martelar ferro fundido numa bigorna no inferno.

O disco fecha com o piano soturno e solitário de “A Box For Black Paul”, uma sátira aos críticos vampirescos, sempre sedentos de sangue a qualquer custo. Não se zangue connosco, senhor Cave, a nossa crítica é respeitosa e favorável: From Her to Eternity é um dos discos mais fortes da sua primeira fase: coeso, macabro e cinematográfico. A beleza brotando afinal da má semente.



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