quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nick Cave and the Bad Seeds – Your Funeral… My Trial (1986)


 

O quarto álbum de Nick Cave and the Bad Seeds, Your Funeral… My Trial, faz uma síntese elegante entre a cor da melodia e o preto-e-branco da raiva pós-punk.

Em 1986, pouco mais enfiando no bucho do que speeds e heroína, Nick Cave deu-nos dois belos álbuns (e ainda dizem que os junkies são mandriões): a inesperada colecção de versões Kicking Against the Pricks (Cave cantando Tom Jones!? sem qualquer ironia!? e resultando!?) e o melancólico disco de originais Your Funeral… My Trial, a primeira vez em que o senhor Cave sai do armário e assume a sua condição de melodista (Nick bem tenta compensar a doçura melódica do lado A com a violência e dissonância do lado B mas o mal já está feito: ainda hoje há fãs dos Birthday Party que não lhe falam na rua).

Nem Let Love In, nem The Boatman’s Call: que nos caia já aqui um raio se as quatro primeiras canções de Your Funeral… My Trial não forem a sequência mais perfeita em toda a discografia dos Bad Seeds!

“Sad Waters” é lúgubre mas resignada (a miúda linda do rio foi desaguar noutra foz? é assim o mundo, o que é que se há-de fazer?). O órgão Hammond – tocado pelo próprio Cave – vai chorando devagar como o rio triste que passa.

“The Carny” é uma valsa macabra à Kurt Weill, perversa e decadente como um cabaret berlinense dos anos vinte (o órgão circense tocado pelo próprio Chucky, o boneco diabólico). A música é teatral, condicente com o spoken word literato de Cave: a trupe de um circo enterrando o cavalo famélico de um colega misteriosamente desaparecido, a chuva impiedosa a abater-se sobre a cova. Música, cinema e literatura condensados numa só canção.

Segue-se o sombrio tema-título, balada ao piano linda de morrer (a expressão não é fortuita: ao funeral da esposa corresponde mesmo a sentença do marido). “Stranger Than Kindness” é o mais próximo que os Bad Seeds alguma vez estiveram da beleza soturna dos Joy Division (quem ouvir esta música, e não sentir qualquer coisa a quebrar, já nada sabe, já nada sente).

O frenético lado B não é tão sublime mas compensa a sobriedade das melodias com a vitalidade da sua raiva. Destaque para a obsessiva “Hard On for Love”, tão maravilhosamente bem escrita que nos pomos do lado do vil violador (odiamos-te, Cave, por sujares também as nossas mãos).

Toda a obra de Nick Cave vai navegando entre o mel da melodia (The Boatman’s Call; No More Shall We Part) e o fel da agressão (From Her to Eternity; Dig, Lazarus, Dig!!!). Os fãs dividem-se quando ao travo favorito: uns preferindo as ternas baladas, outros escolhendo a selvajaria. Nós, por aqui, gostamos muito da fase mestiça de Cave, onde coabitam os dois sabores. Your Funeral… My Trial estreia com engenho essa fértil síntese.


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