terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Por uma história da música eletrônica popular brasileira


 De tempos em tempos um vídeo de Mano Brown em debate com o escritor Francisco Bosco volta a viralizar. Na conversa, gravada em 2017, o rapper discute apropriação cultural e cita o o peso e o significado que um camiseta do Racionais MCs possui: “Você tá com camisa do Racionais e tá indo pra onde? Pra rave!? Não, não, não!”

Embora muito compartilhada nas redes como uma espécie de piada, a fala de Brown reflete uma discussão mais ampla: uma visão compartilhada de que a música eletrônica é uma área dominada pela elite branca, sendo assim um espaço de discriminação contra pretos e pessoas de quebrada. Essa é uma ideia comum e Brown não foi o único a tocar no ponto. Outro importante expoente do rap brasileiro, o grupo Facção Central também retrata a música eletrônica como uma cultura da elite — e elitista — nos versos da música “A Bactéria FC”: “Fala pra vaca da sua filha cancelar o ectasy/ não vai rodar a banca com meu som na festa rave/ O rap concebido em sampler de sangue/ Não é trilha pra bisneto de dono da casa grande”.

E isso não é uma simples treta rap versus eletrônica. A DJ Mari Gonçalves é uma mulher negra que integra o Turmalina e Arruaça, dois coletivos de música eletrônica do Rio Grande do Sul. Numa entrevista que fiz com ela, a artista falou sobre o embranquecimento dessa cultura: “Quando eu assisti aquele documentário Pump up the volume: A history of House music foi que eu entendi o processo de higienização e de apropriação que a música eletrônica foi sofrendo ao longo dos anos. Vi o filme e fiquei pensando na falta de representatividade. A gente ia para os rolês e não se via”.

Apesar dos grandes festivais de EDM estarem repletos de gente branca endinheirada, é bom lembrar que no Brasil a música eletrônica de pista possui uma origem popular, negra e com fortes bases fora do eixo Rio-São Paulo, sobretudo as festas de aparelhagem em Belém. “As festas paraenses foram, muito antes dos clubs paulistanos, os locais onde a house e seus derivados da dance music eletrônica primeiro seduziram os dançarinos brasileiros”, afirma o antropólogo Hermano Vianna no livro Música do Brasil (2000). “O gosto pelo baticum eletrônico se espalhou rapidamente pelos outros estados da Amazônia, principalmente através de fitas piratas vendidas por camelôs”, detalha o autor.

No início dos anos 2000, uma aparelhagem como a Tupinambá (e repare neste nome indígena!) , operava com a mais alta tecnologia de som, com paredões eletrônicos formados por computadores, mini-discs, samplers, mixers e teclados sequenciadores. E o repertório? “A gente começa geralmente com o house pop, o house nacional. Aí vai entrando a música baiana, vai entrando o pagode… Aí vem o brega, o brega de montão, tem que ser uma hora de brega. Vem a lambada, o merengue, forró, que também tá muito forte”, contou o DJ Dinho, que comandava o Tupinambá, em entrevista à série documental Música do Brasil, exibida em 2000 pela MTV. Ou seja, a musicalidade eletrônica estava tão conectada à cultura local que ela poderia ser tocada na mesma festa que outros ritmos brasileiros mais tradicionais, como o forró, e não seria considerado um elemento estranho. O beat eletrônico estava entranhado na festa cotidiana, nas formas de dançar, nas relações entre as pessoas e seu território.

Além das aparelhagens, outro marco dessa música eletrônica popular — ainda longe de ter o devido reconhecimento — foi o Dance Nacional, movimento de house music que teve seu auge em Manaus entre os anos 1985 e 2000. Segundo a pesquisa de mestrado do historiador Marcos Roberto de Oliveira, essas festas eram realizadas em “danceterias voltadas para o público de favela” e reuniam cerca de três a quatro mil pessoas. Um dos pioneiros do gênero foi o DJ Raidi Rebello. Em 1990, ele lançou o LP Dance Music Vol. 1, um set mixado que trazia as novidades internacionais do freestyle, house e techno. Quatro anos depois, ele nacionalizou esse som em Dance Mix 4, que trazia a primeira faixa em português do estilo: “Dance com a Gente”, cantada pelo MC Vappo 


O dance nacional — que Hermano Vianna descreve em seu livro como “House Amazônico”, imprimindo um certo tom exotizante — também foi permeado por tensões de classe social. Em entrevista ao pesquisador Marcos Roberto de Oliveira, Raidi Rebello contou que a playboyzada (ou “filhinhos de papai”, para usar o termo dele) ficava estacionada em seus carros do lado de fora das festas. Segundo Raidi, estes não entravam nas danceterias porque preferiam manter distância do público da periferia — mas não podiam resistir ao poder de sedução daquela música. “Eles mandavam o cara que ele engraxava o sapato dele comprar as fitas que eram vendidas aqui”, relatou o DJ, revelando como as elites encontraram formas de de consumir aquele novo som sem misturar-se com os pobres e pretos “galerosos” que formavam sua comunidade.

Casos como o das aparelhagens de Belém e o house nacional de Manaus apontam para uma genealogia da música eletrônica brasileira que vai além dos grandes centros urbanos do país, bem como ressaltam o papel fundamental das mãos das classes populares na construção e disseminação das inovações culturais eletrônicas no país. A música eletrônica não é um elemento estranho nas quebradas. Ao contrário, ela está no cerne de várias expressões culturais advindas das periferias, onde emergem revoluções sonoras que vão transformar a identidade local e nacional.

A música eletrônica é um território em disputa

Cada região do país desenvolve suas singularidades musicais, dando saltos criativos em experimentação com as novas tecnologias da época. O funk, por exemplo, trouxe ao repertório musical brasileiro uma gramática eletrônica cujas influências viajam do Miami Bass de 2 Live Crew até o Electro de Egyptian Lover, passando ainda pelo Techno dos alemães Kraftwerk — o pesquisador e músico Paulo Beto conta, no prefácio da biografia da banda, que os bailes do Rio de Janeiro eram o único lugar no Brasil em que a música “Boing Boom Tschak” fazia uma multidão dançar no ano de 1986, quando a faixa foi lançada. Ao mesmo tempo, o funk não contentou-se em trazer elementos de fora, mesclando os beats eletrônicos com percussões de origens afro-brasileiras que levariam a realizações únicas, como o Tamborzão.

A música eletrônica é um território em disputa. Repensar a sua história no Brasil torna-se cada vez mais urgente. Mas não como um projeto arqueológico (do tipo descobrir os fundadores, encontrar marcos do passado para torná-los peças de um museu parado no tempo), e sim como retomada de seus fundamentos para construir um futuro outro, movido pela energia das experimentações vanguardistas populares. Porque é isto que a história das aparelhagens, do dance nacional e do funk nos mostram: o pioneirismo das periferias em absorver tendências da música do mundo e, intimamente conectadas com as tecnologias, desenvolver uma forma de música diversa, disruptiva e globalizada, mas sobretudo brasileira.

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