Demitido do Black Sabbath e imerso nos vícios, vocalista só se recuperou com seu primeiro disco solo, gravado com Randy Rhoads na guitarra, Bob Daisley no baixo e Lee Kerslake na bateria, além de Don Airey nos teclados
Sem meias-palavras: Ozzy Osbourne estava na merda em 1979. Demitido do Black Sabbath após uma década de sucesso e excessos ao lado da banda, o vocalista estava submerso em seus vícios e sem perspectiva de futuro.
O Madman sempre diz que não poderia ser outra coisa além de músico, porém, sua falta de aptidão para outras atividades piorava um quadro já agravado pelos problemas de dependência química. Ozzy nunca foi um visionário – tanto que era, inegavelmente, coadjuvante no Black Sabbath.
Como qualquer outra pessoa diante de uma impressionante adversidade, ele pensou em desistir. Em sua biografia, ‘Eu sou Ozzy’, ele diz que considerou largar sua carreira na música e trabalhar na construção civil. Parece absurdo imaginar isso, todavia, naquela época, ele não era o Ozzy “figuraça” que todos conhecemos. Era apenas o então ex-vocalista do Black Sabbath.
A sorte dele começou a mudar quando o empresário do Sabbath, Don Arden, o deu uma chance ao contratá-lo para sua gravadora, Jet Records. A filha do manager, Sharon, foi deslocada para monitorar cada passo de Ozzy, protegendo seu investimento. Ela, que se tornaria esposa do vocalista, foi quem colocou a vida e a carreira dele nos eixos, com seu poder de organização e solução de problemas.
A criação da banda solo de Ozzy Osbourne
Osbourne, então, começou a rascunhar um projeto solo, que se chamaria Blizzard of Ozz. O primeiro nome especulado para se juntar à formação foi o guitarrista Gary Moore, mas o irlandês também estava trabalhando em carreira solo, depois de uma curta segunda passagem pelo Thin Lizzy. Ainda assim, ele resolveu ajudar, fazendo audições com possíveis candidatos para a banda de Ozzy, pois sentia “pena” do Madman.
O baixista Bob Daisley, então notável por ter tocado com o Rainbow, afirma ter sido o primeiro a entrar, de fato, para a banda. “Fui de trem até Stafford, fui à casa de Ozzy e ele tinha alguns caras, como um baterista e um guitarrista. Eram caras legais, mas não curti, não houve química. Fui à cozinha com Ozzy e falei: ‘se você quer fazer algo sério, não acho que esses dois aí sirvam’. Ozzy falou: ‘ok, me dê um minuto’. Ele dispensou os dois”, relembrou Daisley, em entrevista ao ‘The Metal Voice’.
Ozzy, por sua vez, aponta que a primeira entrada foi a do guitarrista Randy Rhoads, que vinha do Quiet Riot, uma banda americana que, até então, só havia lançado discos no Japão. O Madman diz que quase chorou ao testemunhar Randy tocando pela primeira vez. Nem precisou de audição: ele foi contratado apenas pelo que havia mostrado durante seu aquecimento
Rhoads, uma indicação de Dana Strum (futuro baixista do Slaughter e Vinnie Vincent Invasion), seria a arma secreta de Osbourne. Com pouco mais de 20 anos, o guitarrista tinha um talento que impressiona até hoje. Não só isso: contava com disciplina e conhecimento excepcionais, frutos de seus anos como professor na escola de música da mãe, Delores.
A peça final seria o baterista Lee Kerslake, recém-saído do Uriah Heep. Uma nota que nos traz de volta ao presente: infelizmente, Kerslake faleceu em 2020, aos 73 anos, devido a um câncer em estágio terminal. Resistiu à doença e lutou contra ela por anos.
Reativemos a máquina do tempo: Lee entrou para a banda literalmente dias antes das gravações do primeiro álbum começarem no Ridge Farm Studio, em Rusper, na Inglaterra. As músicas foram compostas com um baterista provisório no lugar dele, chamado Barry Screnage, que era amigo de Ozzy, e ganharam um toque sublime com a chegada de Kerslake ao projeto.
Pelo menos outros dois bateristas foram considerados antes de Lee Kerslake, mas não deram certo. Dixie Lee, ex-Lone Star, chegou a tocar em algumas demos, só que não encaixou. Osbourne diz que queria Tommy Aldridge, da Pat Travers Band, todavia, ele já estava dedicado a outros projetos.
Nascia Blizzard of Ozz – o álbum e a ‘banda’
O primeiro álbum acabou ganhando o título ‘Blizzard of Ozz’, um trocadilho com ‘The Wizard of Oz’ (‘O Mágico de Oz’), que seria o nome do projeto. Ozzy jura de pés juntos que a intenção não era montar uma banda, como era o Black Sabbath, mas seguir em carreira solo, pois não queria ter os mesmos problemas de “divisão igualitária” do passado. Bob Daisley garante que a promessa inicial era de que seria um grupo.
Na época, essa questão não era importante. ‘Blizzard of Ozz’ foi gravado em pouco menos de um mês, entre 22 de março e 19 de abril de 1980, e todos os relatos apontam que o processo fluiu naturalmente. A produção ficou a cargo de Max Norman, que não é creditado, junto dos integrantes da banda. Chris Tsangarides seria o responsável pela função, mas os músicos não curtiram o resultado obtido com ele.
O Madman comenta, em seu livro, que a competição com o Black Sabbath era inevitável. “Estaria mentindo se dissesse que não me sentia competindo com o Black Sabbath quando gravamos ‘Blizzard of Ozz’. Eu queria tudo de bom para eles, mas parte de mim estava morrendo de medo que eles fizessem mais sucesso sem mim. E o primeiro disco deles com Dio estava bastante bom. Não saí correndo para comprar, mas ouvi algumas faixas no rádio. […] Mas, assim que terminamos ‘Blizzard’, sabia que tínhamos um disco fabuloso. Tínhamos dois discos, na verdade, porque havia muito material que ficou de fora quando terminamos”, afirmou.
Ainda é difícil comparar ‘Blizzard of Ozz’ com qualquer material do Black Sabbath. São trabalhos únicos, cada um a seu modo. Assim como havia algo especial no Sabbath, o quarteto responsável pelo primeiro álbum solo de Ozzy Osbourne tinha algo de diferente.
“Foi uma combinação única dos talentos de nós quatro”, relembrou Lee Kerslake, ao site ‘BraveWords’. “Em ‘Blizzard’, eu apenas co-escrevi uma música, mas toquei no álbum todo e o co-produzi com os caras. Lembro de ouvir pela primeira vez o resultado final e dizer a Max: ‘temos um grande sucesso aqui’. Era tão diferente de tudo. […] Quando o disco saiu na América, em 1981, estourou. Ninguém tinha ouvido algo assim antes. Os créditos são mais para Randy e Bob, pois eu apenas ajudei a organizar as ideias e colaborei mais com ‘Diary of a Madman’ (álbum seguinte, de 1981), mas tenho orgulho de tudo isso”, completou.
‘Blizzard of Ozz’, faixa a faixa
Logo na primeira faixa, ‘I Don’t Know’, dá para sacar que algo diferente estava rolando ali. Ozzy Osbourne entregou uma de suas melhores interpretações desde ‘Sabotage’ (1975), do Black Sabbath, enquanto Randy Rhoads mostra todas as suas credenciais, desde os riffs empolgantes, passando pelos belos momentos de guitarra limpa e desaguando no solo quase dissonante no miolo da faixa. A cozinha de Bob Daisley e Lee Kerslake funciona bem e as letras, assinadas por Daisley, também são boas.
‘Crazy Train’, na sequência, se tornou o maior hit da carreira de Osbourne. Não à toa: a música tinha tudo. A letra, atual, trazia uma mensagem consciente em meio à Guerra Fria. Os riffs espetaculares prendem a atenção e Rhoads volta a dar show no solo. A forma como o ritmo é conduzido por Daisley e Kerslake é, simplesmente, “classuda”.
A balada ‘Goodbye to Romance’, primeira composição da nova banda, traz o sentimento de Ozzy ao cantar sobre o seu “adeus” ao Black Sabbath e o suposto fim de sua carreira na música. Os arranjos de guitarra são incríveis – e Osbourne dá todo o crédito a Randy Rhoads, que, segundo o próprio, foi o primeiro músico a ter paciência de trabalhar com ele, inclusive na alteração do tom para encaixar melhor em sua voz.
A bela vinheta instrumental ‘Dee’ volta a destacar Randy em seu habitat natural, o violão erudito, mas o clima se subverte com a tensa ‘Suicide Solution’. Ozzy chegou a ser processado por essa música por, supostamente, ter sido a motivadora do suicídio de um adolescente depressivo. O Madman diz que a composição faz referência a Bon Scott, vocalista do AC/DC morto naquela época, enquanto Bob Daisley, que alega ser o criador da letra, aponta que a criou inspirado justamente em Osbourne. A ação na Justiça, claro, não deu em nada.
Outro momento de destaque no disco está logo em seguida: ‘Mr. Crowley’, que volta a reunir todos os diferenciais daquela banda. Até mesmo o tecladista Don Airey, contratado inicialmente como músico de estúdio, deu uma nova roupagem à música, com sua clássica e climática introdução. A construção melódica é um oferecimento de Randy Rhoads, que coloca suas influências neoclássicas para jogo – algo que também se reflete nos geniais solos de guitarra. Bastaria apenas essa música para que Rhoads, tragicamente morto em um acidente aéreo em 1982, entrasse para a história.
“Fãs de Beethoven e Brahms podem não entender, mas a abordagem erudita é uma tradição no heavy metal. O estilo não é tão melódico em sua natureza, geralmente está em tonalidades menores, então, você pode usar várias terças menores. Isso, automaticamente, soa erudito. Leslie West (Mountain) era um dos meus favoritos nesse sentido, pois fazia tudo com feeling”, disse Randy, à ‘Guitar World’, em 1981, também citando Jimmy Page, Jeff Beck e Ritchie Blackmore como responsáveis por esse link com a música clássica.
O álbum perde um pouco de fôlego nos seus momentos finais. ‘No Bone Movies’, por exemplo, está longe de ser ruim, mas não é tão inesquecível como as anteriores. Trata-se, inclusive, da única música do álbum com co-autoria de Lee Kerslake. A balada ‘Revelation (Mother Earth)’ nunca caiu em meu gosto, ainda que tenha, novamente, boa construção melódica. Todavia, o ritmo é devidamente retomado com ‘Steal Away (The Night)’, que, com sua batida rápida e envolvente, dialoga com as bandas de heavy metal que surgiam naquela época.
Sucesso e tretas
Com um repertório tão caprichado, não era de se espantar que ‘Blizzard of Ozz’ fizesse sucesso. Entretanto, os números assustaram até mesmo os envolvidos, pois emplacou rapidamente nos Estados Unidos. Hoje, o álbum tem mais de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Na tal competição com o Black Sabbath, ao menos em números, Ozzy pode se sentir vencedor, já que sua antiga banda nunca chegou a esse patamar de vendas.
No entanto, o sucesso veio acompanhado de mais problemas. Há relatos de que os três instrumentistas estavam insatisfeitos com Ozzy Osbourne, por diferentes razões. Bob Daisley e Lee Kerslake cobravam a suposta promessa de que aquilo seria uma banda, não um projeto solo do vocalista. Randy Rhoads, por sua vez, não curtia tanto a vida na estrada e, curiosamente, não era grande fã de heavy metal – nem de Black Sabbath ele gostava. Pouco antes de morrer, o guitarrista chegou a dizer que deixaria o grupo para fazer faculdade de música.
“Quando o álbum saiu com o nome ‘Ozzy Osbourne’ maior que ‘Blizzard of Ozz’, fez parecer que Ozzy Osbourne lançou um álbum chamado ‘Blizzard of Ozz’. Randy não iria reclamar, pois sabia que era uma boa oportunidade para ele, então, aquilo deixou de ser uma banda”, relembrou Bob Daisley.
Após uma breve turnê pelo Reino Unido, o quarteto se reuniu para gravar o segundo álbum de Ozzy, ‘Diary of a Madman’ (1981), mas Daisley e Lee Kerslake foram demitidos logo em seguida, sendo substituídos, respectivamente, por Rudy Sarzo (colega de Randy no Quiet Riot) e Tommy Aldridge (que Osbourne queria na formação desde o começo). Os novos músicos foram creditados por ‘Diary’, ainda que não tenham tocado uma nota sequer. Vale lembrar que Bob retornou entre 1983 e 1985 e nos anos de 1987/8, 1990/1 e 1994/5, para trabalhar em estúdio.
“Os dois álbuns foram feitos com distância de 10 a 11 meses entre eles, incluindo uma turnê no meio. O primeiro álbum foi feito antes do contrato ser assinado e ainda estava pendente para o segundo, então, perguntamos: cadê o dinheiro do primeiro? Don Arden disse para não nos preocuparmos, então, confiamos. Depois de gravarmos ‘Diary’, Lee Kerslake e eu fomos demitidos. Ozzy queria Tommy Aldridge, que era amigo de Sharon. Desde a primeira turnê, me deixavam de lado e falavam que tirariam Lee para trazer Tommy, algo que eles sabiam que eu discordava”, comentou Bob Daisley, ao ‘The Metal Voice’.
A gravação na pressa de ‘Diary of a Madman’ deixou até mesmo Randy Rhoads chateado, conforme o próprio revelou em entrevista à ‘Guitar World’ em 1981. “Fizemos ‘Diary’ sem intervalo e, nele, focamos mais na composição, o que deixou minha guitarra não muito boa. Fizemos ‘Diary’ com pressa, para depois emendar a turnê do ‘Blizzard’ nos Estados Unidos. Algumas partes de ‘Diary’ ficaram ruins, em termos de guitarra. ‘Little Dolls’, por exemplo, nem tem um solo real. O que você ouve ali é só a guia, um solo bobo que coloquei antes de compor o solo real, mas não deu nem tempo de gravar. Muitas coisas minhas em ‘Diary’ estão sem feeling, soa meio comum”, disse.
Por todos os problemas que aconteceram depois, inclusive a morte de Randy Rhoads com apenas 25 anos na turnê de ‘Diary of a Madman’, a impressão que ‘Blizzard of Ozz’ passa é de um trabalho puro e imaculado. O álbum retrata apenas a ânsia de músicos que querem conquistar (ou, no caso de Ozzy, reconquistar) o mundo.
Até mesmo isso foi manchado em 2002, quando ‘Blizzard of Ozz’ foi relançado com o baixo e a bateria regravados, respectivamente, por Robert Trujillo e Mike Bordin. Os fãs reclamaram tanto que o álbum ganhou mais uma nova versão, em 2011, restaurando os músicos originais. Na última sexta-feira (18), outra edição comemorativa, agora pelos 40 anos do disco, chegou às plataformas digitais, mantendo Bob Daisley e Lee Kerslake.
Rabugento que sou, costumo dizer que Ozzy Osbourne só lançou dois álbuns realmente bons em carreira solo: este registro de estreia e o inspirado ‘No More Tears’ (1991). A forma como a carreira dele parece ter impedido que outros discos clássicos fossem produzidos, mas ‘Blizzard of Ozz’, o mais espontâneo de todos, não deixa dúvidas do potencial que os envolvidos tinham.
Ozzy Osbourne – ‘Blizzard of Ozz’
Ozzy Osbourne (vocal)
Randy Rhoads (guitarra, violão)
Bob Daisley (baixo)
Lee Kerslake (bateria, percussão)
Don Airey (teclados)
1. I Don’t Know
2. Crazy Train
3. Goodbye to Romance
4. Dee
5. Suicide Solution
6. Mr. Crowley
7. No Bone Movies
8. Revelation (Mother Earth)
9. Steal Away (The Night)
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