segunda-feira, 27 de março de 2023

dEUS – In A Bar, Under The Sea (1996)


 

O segundo álbum dos dEUS é caótico mas melódico, bizarro mas viciante. Nunca o indie foi tão doido e colorido.

De que pensamos quando pensamos na Bélgica? Não há meio termo: ou imaginamos burocratas com meias brancas sublinhando o regulamento do condomínio na cama; ou lembramo-nos da excentricidade cosmopolita dos dEUS, com a pinta boémia de quem vai à cinemateca à meia-noite, ao hot club às duas, ao bairro alto às quatro, fuma um joint às seis, lê um Kerouac às oito, beija a namorada às 10h (que por acaso é a miúda do “Common People” dos Pulp, estudante de escultura não sei aonde). Com toda esta aura “are you living in the night?”, a banda de Barman fez mais pela reputação do seu país do que décadas de exportação massiva de chocolate belga.

Adiante.

Há quem seja por Ideal Crash (’99), elogiando a sua elegância e parcimónia  pop; nós preferimos a loucura colorida dos dois primeiros álbuns: mais crua em Worst Case Scenario (’94), mais apurada em In a Bar, Under the Sea (’96). Meus amigos, tirem o escafandro do roupeiro; vamos ao fundo do mar beber um bom gin.

Nenhum tema exemplifica melhor a sua criatividade tresloucada do que a frenética “Fell of the Floor, Man”. Tudo o que é contraditório conflui aqui: um rap demente de chamada-resposta (“Suds & Soda” style) com um groove avassalador, guitarras zangadas no vermelho que aparecem durante uma fracção de segundo e se esfumam logo a seguir, a alegria pueril do disco sound, convocada com uma deliciosa ironia (até os teclados zombam da situação com uma cantilena infantil). É nesse irresponsável desprezo por todas as convenções que os dEUS vão buscar a sua estranha originalidade. Como uma criança a pintar a lua de verde só porque sim. É mais forte do que eles. Mesmo “Little Arithmetics” – doce e trauteável – é corrompida duas vezes: levemente no acorde tenso e dissonante de abertura, à bruta no epílogo nervoso e agressivo.

Na opressiva “For the Roses” há mesmo requintes de malvadez. São só três acordes, repetidos obsessivamente numa tensão crescente, aumentando o nosso batimento cardíaco a cada nova levada (quando as afinações dissonantes à Sonic Youth entram estamos já a um passo do ataque de pânico). A todo o momento esperamos que a tensão estravaze mas a resolução nunca aparece. Onde acaba a arte e começa o puro sadismo é difícil de dizer.

Os dEUS não inventaram a roda. Cada componente é roubado a outrem. É na colagem esquizofrénica que mora a sua originalidade. Veja-se o exemplo do blues psicótico de megafone que de vez em quando assoma: todo ele provém do eixo Captain Beefheart-Tom Waits-Marc Ribot (o pai, o filho e o espírito santo). Se há semelhanças com o experimentalismo beatnick dos Morphine é porque Marc Sandman foi beber à mesma fonte. O parentesco é aliás oficializado: Dana Colley toca saxofone em “Serpentine”.

Imaginativo, bem-disposto e irreverente, In a Bar, Under the Sea é o auge criativo dos dEUS. Sendo o último disco a contar com Steff Carlens no baixo (e com alguma guitarra de Rudy Trouvé, entretanto substituído), representa o fim da primeira fase da banda: melódico-lunática, arty até à quinta casa. Sem estes ilustres fundadores os dEUS nunca fariam maus discos – o gosto irrepreensível de Barman não o permitiria – mas alguma desta doidice primordial perder-se-ia para sempre. É uma pena. Temos saudades de ir ao fundo do mar beber um bom gin.


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