segunda-feira, 27 de março de 2023

Nine Inch Nails – The Downward Spiral (1994)


 

O segundo álbum dos Nine Inch Nails é um clássico incontornável dos anos 90. Ao acrescentar uma sensibilidade pop à música industrial, The Downward Spiral democratiza um género antes obscuro.

Não se chega à perfeição ao primeiro trago (até Deus demorou seis dias para criar o mundo). Primeiro, Trent Reznor tentou a  synthpop de Pretty Hate Machine (’89) mas o que lhe sobrava em cancões orelhudas faltava-lhe em originalidade (a dívida aos Depeche Mode era embaraçosa). Experimentou depois a agressividade purista da música industrial com o zangadíssimo EP Broken (’92), sacrificando, porém, a riqueza melódica anterior. Só com o matizado The Downward Spiral (’94) é que os Nine Inch Nails por fim se encontram, conciliando a violência das máquinas com o doce melodismo da pop.

O álbum grita nineties! a cada instante: na sensibilidade atormentada, nas guitarras estridentes, na síntese elegante entre o analógico e o digital. Que uma obra tão fora da caixa tivesse alcançado o segundo lugar só mesmo nos excêntricos anos 90. O título diz tudo sobre o conceito: a vertigem de um homem em direcção ao abismo. O seu hedonismo sombrio – sexo, coca e suicídio – é de uma sinceridade arrepiante: Reznor lutava com os mesmos demónios, encurralado na mesma espiral de auto-destruição. O facto de tudo ter sido gravado na casa onde Sharon Tate foi assassinada torna o disco ainda mais sombrio: o espectro de Charles Manson sussurrando “sangue” ao ouvido…

Para nós, que em ’94 estávamos no pico da neura adolescente, era fácil identificarmo-nos com tanta urbano-depressão. Podíamos não ter MTV mas havia sempre um amigo “Alternative Nation” com parabólica em casa. Foi assim que tropeçámos nos Nine Inch Nails. Era assim que se descobria música antes de haver?net, contamos aos nossos filhos à volta da lareira.

Na sua origem, a música industrial era difícil e anti-pop. Bandas como os Throbbing Gristle e os Einsturzen Neubaten usavam os ruídos maquinais – definidores do género – com o propósito deliberado de agredir os seus ouvintes. Trent Reznor nunca perfilhou deste dogma anti-público. Conciliar a rudeza fabril com o formato canção – e, no caminho, conduzir a música industrial ao mainstream – foi o grande legado histórico dos Nine Inch Nails. Por isso, o maquinal e o humano andam sempre juntos em The Downward Spiral: o primeiro na precisão fascista das batidas mecânicas; o segundo na imperfeição da voz de Trent Reznor (ora gritando, ora sussurando; sempre vulnerável).

O que é interessante na relação de Trent Reznor com a música industrial é o deprezo por qualquer livro de regras. O baixo serpenteante de “Closer” – com o seu balanço sensual à Prince – manda o imaginário da fábrica hostil para a mãezinha que o pariu (o mesmo contraste contra-intuitivo entre um groove humaníssimo e batidas pneumáticas assoma na viciante “Piggy”). Destaque para o inolvidável verso “I wanna fuck you like an animal”, porventura a declaração de intenções mais célebre do alternative rock (“quero fazer amor contigo como um bichano”, esclarece-nos o Google Translate).

A linda de morrer “Hurt”, com o seu desamparo sussurrante, ofende, uma vez mais, a devoção industrial a tudo o que é barulhento e automático; de tal maneira que um célebre cantor country a fez sua no leito da morte. O feudo entre os que acham a versão de Johnny Cash superior e os que preferem o original continua a alimentar lutas intestinas, o que só agiganta o tamanho da canção.

A plácida “A Warm Place” – instrumental atmosférico à Brian Eno – ainda blasfema com mais ardor contra o catequismo industrial: no lugar das máquinas moendo o juízo à gente sentimos um doce enlevo espiritual. Porquê tanta serenidade num disco sobre a queda de um homem? Provavelmente pela paz traiçoeira que sempre antecede o suicídio (o alívio do fim iminente). O travo cinematográfico deste tema deu-lhe a confiança para mais tarde compor belíssimas bandas-sonoras.

Todas estas excepções não nos devem distrair da regra em The Downward Spiral: a violência dos riffs e dos gritos, com uma toada roçando o metal. A avassaladora “March of the Piggs” é tão rápida e brutal que os Ministry parecem easy listening por comparação. O velho truque pós-Pixies da alternância suave/forte só amplia o impacto da agressão.

Falámos muito do Trent-Reznor-o-escritor-de-canções mas é preciso não esquecermos Trent-Reznor-o-arquitecto-de-sons. Bem sabemos que a produção foi dividida com o ubíquo Flood mas a atenção obsessivo-compulsiva ao detalhe tem a sua inconfundível assinatura. Nenhuma história musical da década de 90 se pode escrever sem destacar The Downward Spiral. Nenhuma narrativa sobre o estilo industrial pode ignorar o momento mais fulgurante do género.


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