Zombie, de Fela Kuti, é uma sátira corajosa contra um governo corrupto. Uma festa do ritmo afrobeat.
No início da década de 70, Fela Kuti e Tony Allen inventam o afrobeat, uma mistura de jazz, funk e música tradicional africana com um groove exótico e demolidor. O expoente máximo do género é Zombie, de ’76, uma crítica mordaz à ditadura militar nigeriana.
O álbum tem apenas duas longas músicas, cada uma com mais de 12 minutos: o frenético tema-título no lado A e a mais sossegada “Mr. Follow Follow” no lado B.
“Zombie” é sempre igual: as duas guitarras percurssivas que aparecem sozinhas no início definem os acordes e o balanço de todo o tema, um pulsar vibrante que nunca é interrompido. Mas “Zombie” também é sempre diferente: ora adicionando camadas para um ritmo mais maníaco – o baixo gingão, os batuques tradicionais, a bateria propulsiva de Tony Allen -, ora subtraindo-as para que o groove seguinte seja ainda mais arrasador.
Consolidado o ritmo, entra o saxofone de Fela, solando eufórico como um chamã em speeds. A musculada secção de sopros reforça a exaltação, repetindo em uníssono o riff central. Mas o prato principal estava ainda por vir: Fela Kuti cantando no seu africaníssimo barítono e as suas Queens respondendo num coro de êxtase tribal.
Nunca é demais sublinhar o talento extraterrestre de Allen, um baterista que vale por quatro porque mão esquerda, mão direita, pé esquerdo e pé direito tocam, cada um, um ritmo independente. As suas batidas estão em permanente mutação, fluindo com naturalidade como um riacho a correr, servindo humildemente sua majestade o groove. Na sua síntese elegante entre o jazz moderno de Max Roach e os ancestrais polirritmos da sua terra, Allen fecha o círculo da diáspora negra: de África para a América nos navios de escravos, da América de volta à mãe África nos discos de Art Blakey e James Brown.
O tema, já o dissemos, é uma sátira violenta à ditadura militar, onde os soldados são ridicularizados como zombies, autómatos sem vontade própria: “zombies no go think until you tell’em to think”. A música foi um sucesso não só na Nigéria, como pela África fora, o que ainda enfureceu mais o regime. O facto de Fela ter proclamado a sua casa-estúdio como uma república independente (a famigerada República de Kalakuta) também não ajudou à festa. As represálias não tardaram: os “zombies” entraram pela sua casa adentro, espancando Fela violentamente, violando as mulheres, queimando tudo até não sobrar pedra sobre pedra. A sua mãe, octagenária, foi atirada da janela de um primeiro andar, morrendo das sequelas uns meses depois.
Ou por insana coragem, ou por valente loucura, Fela não esmoreceu. Pelo contrário, a sua luta quixotesca contra a sanguinária ditadura tornou-se ainda mais aguerrida. Por isso, Zombie é muito mais do que um disco maravilhoso. É uma bandeira contra a tirania. É um farol de liberdade.
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