quinta-feira, 9 de março de 2023

Floating Points, Pharoah Sanders & London Symphony Orchestra – Promises (2021)


 

Ao todo, somos presenteados com nove movements, mas é como se fosse apenas um. Enquanto escutamos as notas respiradas por Pharoah, os apontamentos eletrónicos de Floating Points e o trabalho de cordas discreto, mas assertivo, da London Symphony Orchestra, não sentimos a passagem do tempo.

É certo que todos os ouvidos encontram em Promises uma descoberta astral – mesmo aqueles que, desde os anos 60, escutam os murmúrios de Pharoah Sanders e que, desde o final da primeira década do século XXI, esbarram nas palpitações eletrónicas de Sam Shepherd (Floating Points). No entanto, a música inscrita nesta colaboração, que era uma das mais esperadas do ano, não deve surpreender ninguém.

Promises é um trabalho que reproduz fielmente as vidas criativas do mago norte-americano do jazz e do feiticeiro britânico da música eletrónica. Do primeiro segundo ao último, as mentes musicais dos dois artistas unem-se e transformam-se numa única existência, num só momento. Ainda que a London Symphony Orchestra seja a terceira parte integrante do projeto, ficamos com a sensação de que, na grande maioria dos movimentos, ela escolhe ficar escondida atrás do sopro de Pharoah e dos cabos infinitamente eletrónicos de Floating Points.

Promises resulta de uma colaboração iniciada em 2015. Nesse ano, Pharoah soprava as velas pela septuagésima-quinta vez. Também nesse ano, Floating Points editava Elaenia, o seu LP de estreia. Em 2015, os agora confidentes não se conheciam – ainda. Entre eles, existia então uma enorme extensão de vida, formada por longos processos temporais e espaciais, que os separavam. Até que, um dia, a criatividade juvenil de Floating Points, que na altura contava apenas 26 anos, interrompeu a merecida velhice de Pharoah. O saxofonista admitiu que, após ter escutado as produções de Sam, sentiu uma enorme vontade de criar mais uma grande obra. Realmente, faixas como “Silhouettes (I, II & III)”, a obra-prima de Elaenia, colocam qualquer coração aos saltos e aceleram os sentidos de todas as almas.

Este álbum é, efetivamente, uma promessa que Sam faz a Pharoah. O inglês concedeu-lhe, talvez, a derradeira oportunidade para tocar o instrumento de sopro, autêntico companheiro de uma vida. Assim, o jovem ajuda o velho e satisfaz-lhe esse desejo. Mas o velho também intercede pelo jovem, ajudando-o, e dá-lhe a provar uma experiência inesquecível, quase divina.

Não são todos os que colaboram com Pharoah Sanders. Num plano prévio e abstrato, revelava-se improvável uma colaboração entre os dois músicos, que são oriundos de épocas e áreas criativas tão diferentes. Mas toda a música é possível. Desde que exista, primeiro, uma ideia e, depois, a vontade louca de a concretizar na prática, todas as sonoridades são possíveis. A beleza de Promises reside nessa realidade, penso. É realmente um álbum cheio de vida. A cada audição, os sons que dele emanam tornam-se cada vez mais inspiradores e reveladores das verdades do mundo. Apesar de os media estarem a focar (merecidamente, note-se) na performance de Pharoah (dominar um saxofone aos 81 anos é uma tarefa hercúlea), afigura-se importante atentar no contributo de Floating Points. Para isso, importa olhar para a sua carreira e, em especial, para o seu último álbum a solo, Crush (2019).

Nesse LP, podemos identificar muitas das propriedades de Promises – sobretudo no tema iniciático, “Falaise”. Claro que, em 2019, esse exercício de identificação e associação era bastante mais complicado, visto que a existência de Promises não era conhecida por ninguém. Apesar de seguir um padrão tipicamente eletrónico, Crush liberta, em vários momentos, impressionantes passagens de cordas e de alguns instrumentos de sopro. Aliás, nesse álbum vive até uma música cujo título é “Requiem For CS70 & Strings”. O nome não podia ser mais claro. Deixa-me descansado – e feliz – o facto desta colaboração com Pharoah fazer com que a arte de Floating Points possa chegar a mais ouvidos. Por tudo aquilo que tem criado ao longo da carreira, Sam merece essa oportunidade (tal como todos os bons artistas). Para além de ser músico, Sam Shepherd é cientista. Tem dois PhD’s: um em neurociência e outro em epigenética. Este facto surpreende qualquer pessoa, no entanto, o que fascina na vida de Sam é a forma como ele conseguiu integrar na sua expressão musical os elementos físicos, biológicos e científicos das suas áreas de estudo. É verdade que esta realidade manifesta-se com mais claridade nos trabalhos a solo do artista britânico, mas ficamos com a ideia de que também está presente em Promises. Afinal, o som é o mais bonito fenómeno físico. Trabalhos como Promises justificam essa afirmação. Ao todo, somos presenteados com nove movements, mas é como se fosse apenas um. Enquanto escutamos as notas respiradas por Pharoah, os apontamentos eletrónicos de Floating Points e o trabalho de cordas discreto, mas assertivo, da London Symphony Orchestra, não sentimos a passagem do tempo. É inegável que, a cada audição, ficamos sempre um pouco mais velhos, contudo, o efeito das horas, dos minutos e dos segundos esbarra na porta de Promises.

Aos meus olhos, este álbum conta a história de um velho e de um jovem. O velho quer sentir-se vivo. O jovem pretende ganhar experiência e tornar-se mais astuto nos confrontos com a vida. Por isso, o jovem ajuda o velho e o velho ajuda o jovem. O velho é Pharoah Sanders e o jovem é Sam Shepherd, que aparece  escondido atrás da capa mágica de Floating Points. Em conjunto, os dois, que formam a antítese mais intensa da vida, criaram uma obra-prima que, em apenas nove movimentos, reflete a totalidade das emoções humanas, comuns a todos nós, agora, no passado e no futuro.

Apesar de ter apenas uma semana de vida, esta criação parece existir desde o início do tempo. Algo divino diz-nos que Promises vai ficar para a posterioridade.


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