quarta-feira, 29 de março de 2023

Ian Dury – New Boots and Panties!! (1977)

 

Ian Dury, maior do que a vida, o primeiro a cunhar as imortais palavras “sex and drugs and rock and roll”. Bem-vindos à sua obra-prima, New Boots and Panties!!

Ian Dury começa as suas lides musicais na cena pub rock londrina (uma reacção às pretensões pseudo-intelectuais do rock progressivo) como frontman dos obscuros Kilburn and the Highroads, e assim permaneceu durante toda a primeira metade dos anos 70. A música não é grande coisa mas a extravagância em palco – circense e decadente como a capa do Strange Days – já dá que falar, ajudando a vender muitas canecas de cerveja. Os Kilburn acabariam sem fama nem glória mas dois acontecimentos mudariam a sorte de Dury: uma parceria criativa com Chaz Jankel e a explosão do punk em 76/77. Agora, sim, tudo se conjuga: bonitas melodias, um groove assassino e a bênção da nova ordem (acolhendo Ian como um dos seus). Johnny Rotten dos Pistols roubar-lhe-ia alguns truques…

O primeiro disco de Dury, New Boots and Panties!!, move-se neste periclitante equilíbrio entre o balanço funk que domina o lado A e a sujidade punk que prevale no lado B (dançamos ou cuspimos, eis a questão). A unir tudo está a voz de Ian, blasé e teatral, despenteada e burlesca, music-hall para maltrapilhos e bêbados. Com o seu sotaque cockney cerrado e indisfarçável malícia, Dury parece um vilão de um livro do Dickens. O que lhe falta em técnica vocal sobeja-lhe em ritmo, fazendo as sílabas dançar com o seu balanço sincopado, rap antes do rap com chá e peixe frito. E assim se faz um clássico da new wave.

É com um misto de maldade e de ternura que Ian dá vida às suas personagens: o fanfarrão Billericay Dicky gabando-se das suas proezas sexuais, provavelmente bazófia para esconder a solidão (“had a love affair with Nina / in the back of my cortina”); o néscio Clevor Trevor, trapalhão com as palavras, mas nunca abdicando da sua dignidade; a junkie  Plaistow Patricia abrindo uma loja de roupa lá o bairro, fintando o fatal destino. Dury pode começar esta última canção arreliado – “arseholes, bastards, fucking cunts and pricks!” – mas o seu carinho pelos underdogs é inegável, talvez porque também ele é um orgulhoso pária: aleijado desde os sete anos e sem vergonha de o ser. Em palco Dury brinca com o seu handicap, incorporando-o no seu demente cabaret.

Madness, Blur, The Streets e Sleaford Mods foram alguns dos seus digníssimos herdeiros.

Em “Wake Up and Make Love With Me”, com os teclados vaporosos de Chas e a linha de baixo à Chic destacadíssima na mistura, Dury subverte a soul sensual à Barry White com o seu humor malandro: “I come awake / with the gift for womankind / you’re still asleep / the gift don’t seem to mind.” Muito provavelmente a mais refinada referência lírica a… erecções matinais.

Toda a gente gosta de rufias rudes com um coração grande. Por isso, quando em “My Old Man” Dury faz finalmente as pazes com a memória do seu pai, a comoção bate mais forte. Sucede o mesmo com o rockabilly de “Sweet Gene Vincent”, onde Ian, o Cruel, homenageia o seu ídolo com uma inesperada doçura.

New Boots and Panties!! é um disco tão consistente que se dá ao luxo de deixar de fora dois singles perfeitos: “Sex and Drugs and Rock and Roll” e “Hit Me With Your Rhythm Stick”. O álbum seguinte, Do It Your Self, de ’79, ainda é uma delícia mas vicissitudes várias fariam esmorecer a magia durante a década de 80. Pouco importa, os breves anos de ouro chegaram para o testemunho passar. Madness, Blur, The Streets e Sleaford Mods foram alguns dos seus digníssimos herdeiros. Onde houver ternura pela Inglaterra das margens, verbo fácil e um sentido de humor folião, a referência de Ian Dury é incontornável.


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