quarta-feira, 29 de março de 2023

Kevin Ayers – Shooting At The Moon (1970)

Shooting At The Moon é um disco pleno de liberdade criativa, um disco de braços abertos, pronto para acolher todos aqueles que se dispuserem a abraçá-lo também. Mas atenção: tem caráter, nariz empinado e não se deixa vergar, de tão austero.

Uma coisa parece indiscutível: Shooting At The Moon nunca seria o álbum que a maioria dos fãs de Kevin Ayers esperaria encontrar por aqui. Não será nunca, mas isso pouco importa agora, uma vez que é esse segundo álbum a solo do músico inglês que resolvemos ter em conta hoje. As razões são muitas, mas podemos sintetizá-las dizendo que Shooting At The Moon tem um charme muito particular, a par de um temperamento difícil, repartindo-se, em medidas mais ou menos equilibradas, entre a ordem e o caos. Ou, enfim, talvez isto: nem tanta ordenação, nem tanta perturbação assim. No entanto, os julgamentos definitivos ficarão, naturalmente, para quem o ouvir. E vai sendo tempo de recuperar essa pérola perdida no tempo e também numa certa maneira de fazer música, coisa que seria bonito trazer de volta aos dias de hoje.

Shooting At The Moon em nada se compara aos elegantes e (para muitos) insuperáveis Whatevershebringswesing ou Bananamour, terceiro e quarto discos do artista. Nem mesmo ao inicial Joy of a Toy, se quisermos ser justos. Shooting At The Moon pertence a outra categoria, e exige do ouvinte uma diferente disposição. O caso mais gritante será a faixa “Pisser Dans Un Violon”, tema radicalmente experimental, embora possa ser ouvido com o prazer que o mistério e as coisas esquivas sempre encerram. Poucos concordarão, seguramente, mas essa faixa de título francês marca o disco, uma vez que é possível encontrar nela o tal caos de onde tudo parte, uma espécie de epicentro criativo, tentativa de afinação de personalidades instrumentais e musicais de gente como David Bedford, Lol Coxhill, Mike Oldfield (sim, esse mesmo, o dos sinos tubulares) e do próprio Kevin Ayers, pois claro. Outro momento de semelhante teor é a faixa “Underwater”, um novo sopro avant-garde que o álbum apresenta, uma em cada fatia da negra rodela de vinil da recente editora Harvest, em 1970.

Ayers foi um dos fundadores da banda de jazz-rock Soft Machine no final da década de 1960.

Mas nem só de experimentalismo vive o tremendo Shooting At The Moon. Nele também se encontra algum jazz, rock (por vezes progressivo, outras nem tanto), pop (mas é preciso estar bem atento para o encontrar) e doses enormes do carisma de Kevin Ayers. As doces “May I?” (que teve direito, mais tarde, a versão francesa – “Puis Je?”) e “The Oyster And The Flying Fish” (com a participação vocal de Bridget St. John, artista muito querida do icónico John Peel, cuja letra conta a surrealista história de uma ostra que deseja ser um peixe voador) são as faixas mais radio friendly de todo o álbum, mas o potente “Lunatics Lament” desperta-nos para a fibra roqueira de Kevin Ayers, aqui muito bem acompanhada pelo extraordinário solo de guitarra do tímido e quase imberbe Mike Oldfield. Outra faixa que se destaca através das suas airosas particularidades é “Rheinhardt & Geraldine/Colores Para Dolores”, talvez a mais psicadélica de todas as composições do álbum. Resta-nos “Clarence In Wonderland”, antigo tema dos Soft Machine, embora de autoria exclusiva do próprio Ayers, “Red Green And You Blue”, de onde sobressai – e de que maneira! – o saxofone de Lol Coxhill e, a finalizar o disco, o tema que lhe dá título, “Shooting At The Moon”. Este tema mais não é do que outra composição dos Soft Machine (primeira banda a sério em que participou Kevin Ayers), originalmente intitulada “Jet Propelled Photographs”, bem mais ácida, psicadélica e elétrica do que a original, de contornos algo jazzísticos.

Shooting At The Moon é um excelente álbum, embora seja, parece-nos, a porta de entrada errada para quem quiser conhecer a obra de Kevin Ayers. No entanto, ouvir as nove faixas que dele originalmente fazem parte (há uma edição do disco em CD, de 2003, com mais cinco temas, entre os quais o já mencionado “Puis Je?”, que vale bem a pena ter) continua a ser um prazer difícil de igualar na discografia de Ayers, talvez só se aproximando do igualmente excelente e ambicioso The Confessions of Dr. Dream And Other StoriesDisparemos para a lua, então, na certeza de que cada disparo feito será certeiro, sobretudo se soubermos calibrar muito bem o nosso pulsante e pequeno alvo interior.


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