sábado, 15 de abril de 2023

Crack Cloud – Pain Olympics (2020)

 

Cru e autêntico, Pain Olympics é um relato de uma viagem ao mundo avesso da toxicodependência, provando ser um glorioso oponente, ao mesmo tempo que oferece consolo e esperança àqueles que precisam da cura.

A negra nuvem da droga. Admiravelmente nem tudo é morte no mundo da droga. Nascido da agonia de Zach Choy, cantor e baterista, oriundo de Calgary, Canadá, o colectivo Crack Cloud tem as suas raizes na demolição do monstro narcótico. Pacientes em terapia, unidos pela vontade de cura, erigiram um santuário de purga colectiva, na expectativa de contagiar com esperança mentes mais perturbadas. É fácil sentirmos compaixão e empatia por pessoas que sabemos terem um fundo elevado. Os sete elementos que compõe a banda, agora sediada em Vancouver, fazem parte de um grande colectivo criativo de música, arte e multimédia. Os vídeos gravados para este álbum são peças de incrível destreza criativa produzidos pela própria comunidade – um olhar omnisciente sobre as guerras e os espaços abandonados que os drogados habitam numa cidade onde milhares vivem nas ruas.

Quanto mais oiço este disco, mais convencido fico da sua importância no actual panorama da música independente. Inteiro, sem interrupções, este trabalho sabe àqueles livros que nos deixam perplexos sempre que abrimos outro capitulo. É um álbum que não arrefece, surpreende a cada incursão no seu conteúdo. Angular, ornamentado por matizes diversificadas, de Arcade Fire a Massive Attack, passando por Devo, os jovens canadianos alcançaram a graça da criação, ainda que empurrados pela negritude da nuvem da droga, um fardo tão pesado quanto a sua cura. Embriagados pela opulenta abertura de “Post Truth”, o colectivo arranca confiante para a odisseia olímpica, nunca perdendo consciência da dor por que passaram para ali chegar. É frequente ouvir artistas dizerem que o combustível para as suas obras assenta necessariamente ou na dor ou no amor. Eu próprio já disse isso aqui noutro artigo. Redundâncias à parte, esta obra não faria sentido sem esta referência (à dor). Deixar um vício é quase impossível. Euforia, sensação de prazer, autoconfiança excessiva… Mas a que custo?

Somos todos adultos. Mesmo os que nunca experimentaram sabem que voltar é absolutamente horrível. “Somethings Gotta Give”. Segundo o próprio Zach numa entrevista “I think it was important for us to be transparent about where we come from as addicts and as people with histories of destruction,”. Para que é que serve a arte senão para nos tornar mais humanos?

A natureza humana é falível. Erramos com muita facilidade. Mas também somos capazes de fazer coisas incríveis. Os Crack Cloud foram capazes. Passar pela destruição pode fazer-nos crescer. Vermos a decadência recorda-nos o fim. E depois do fim não nos resta nada. O tema “Tunnel Vision” é, quiçá, o momento mais visceral do álbum. Uma descarga de guitarra distorcida, acompanhada por uma crua bateria ripostada por gritos sangrentos, mostrando quão difícil poderá ser a cura para o quase irremediável.

O disco torna-se ainda mais singular pelo uso cirúrgico do saxofone em situações pontuais de zénites extemporâneos. Em tom de postefácio, nos últimos quatro minutos e meio, o colectivo mergulha-nos no pseudo-paraíso. Uma anestesia proibida, antídoto para a dor e vulnerabilidade. “Angel Dust” é paradoxal. Porventura o mesmo paradoxo que Zach Choy e a sua comitiva vislumbram na droga. Uma paixão impossível. Uma relação tóxica com consequências letais.

O grande triunfo desta banda é precisamente o enorme talento por detrás da imensa coragem. Disso é prova categórica o trabalho de 2020, Pain Olympics. Um álbum magnificamente construído, sobre um legítimo fundo literário.


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