Em 1973, os Roxy Music estavam à frente de Bowie em termos de inovação e experimentalismo. O elegante For Your Pleasure não deixa dúvidas a esse respeito.
Há quem prefira os Roxy Music da recta final (soft rock romântico e sofisticado) mas nós preferimos os Roxy da casa de partida (glam rock experimental e futurista). As canções foram sempre escritas por Bryan Ferry mas no fulgor inicial a estética era concebida por toda a banda (cujos valiosos contributos nem sempre foram devidamente reconhecidos). Nos dois primeiros discos havia um bónus adicional, um mago da electrónica chamado Brian Eno. Fala-se muito da tensão criativa entre Ferry e Eno – o primeiro com inclinações mais pop e o segundo mais vanguardista – mas na verdade o conflito era de outra ordem: um choque de egos e uma ciumeira de Ferry, receoso de dividir a atenção com alguém tão carismático. Depois da perfeição do segundo álbum, Bryan expulsa Brian. É a vida…
Fica o legado: For Your Pleasure é a quinta-essência do art rock britânico e um dos melhores discos de sempre. A icónica capa – uma mulher elegante e intangível passeando uma pantera na noite de néon – anuncia ao que vamos: glamour, perversidade, escuridão. Na gótica “In Every Dream Home a Heartache”, a casa moderna perfeita é, afinal, um espaço de fria solidão, onde até o amor é um objecto de consumo: uma boneca insuflável que chega pelo correio. Ferry vai recitando devagar a sua descida em direcção à loucura – “I blew up your body / but you blew my mind” -, acumulando uma tensão exasperante que transborda no final do tema (a guitarra de Phil Manzanera extravasando numa violenta erupção). A nota de suicídio de “Strictly Confidential” recorre à mesma dinâmica de tensão/ catarse. Um fã chamado Peter Murphy ouviria tudo com muita atenção…
“The Bogus Man” também tem um tema levezinho: as aventuras e desventuras de um predador sexual. É a canção mais vanguardista de For Your Pleasure, nove minutos de um groove hipnótico à Can, sólido tal maneira que nem as investidas atonais do saxofone de Andy Mackay o conseguem desmoronar. A duração desmedida desta faixa confirma as nossas suspeitas: para além do glam (o brilho, a cor) há também muito rock progressivo em For Your Pleasure (os solos virtuosos, o anti-minimalismo).
Na apunkalhada “Editions of You” Ferry revela o seu fascínio pela aristocracia: “old money’s better than new”. Algo curioso se atentarmos nas suas origens working class, nascido e criado numa paupérrima cidade mineira. Não é por acaso que a maior base de fãs dos Roxy Music se situava, justamente, nas cidades industriais do norte de Inglaterra (onde muitos fãs com backgrounds similares se apresentavam de gravata nos concertos): quem conhece em primeira mão o desconforto da pobreza refugia-se, muitas vezes, num glamour imaginado, uma aristocracia do gosto.
Sublinhe-se a ruptura do glam com a contracultura hippie: a última rejeitando os valores do velho star system – a elegância, o luxo, o artifício – e o primeiro reavivando-os. Não se pode, porém, tomar duas vezes banho no mesmo rio. Bryan Ferry sabe bem que o mundo anterior ao rock’n’roll desapareceu para sempre. Se o revisita é com um distanciamento camp, a meio caminho entre a ironia e a sincera devoção. Se hoje, no século XXI, esta reciclagem kitsch de referências do passado é relativamente trivial, o gesto era subversivo em 1973, uma lufada de ar fresco. A voz afectada de Ferry, quase vaudeville, tem esse delicioso travo retro.
O tema-título, que encerra o álbum, é quase um manifesto glam: “part false, part true / like anything / we present ourselves”. É o próprio ideal de autenticidade dos anos 60 que agora é questionado, a música já não como verdade mas como teatro e artifício. Ao segundo minuto de “For Your Pleasure” Ferry deixa de cantar e Eno começa a brincar com os botões do estúdio, desdobrando as notas do piano num estranho eco, pássaros impossíveis a esvoaçar. Só mais tarde Brian Eno inventaria a música ambiente mas o germe já está aqui, pincelando ambiências, pintando com sons. Sem Eno os Roxy fariam discos deliciosos, ninguém o pode negar; mas nunca tão prenhes de futuro como o brilhante For Your Pleasure.
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