sábado, 20 de maio de 2023

Conjunto Cuca Monga – Cuca Vida (2020)

 

Totalmente gravado à distância em modo cadáver-esquisito, Cuca Vida é um bem-disposto e despretensioso mergulho no grupo de WhatsApp da Cuca Monga, cheio de private jokes, piscadelas de olho ao mundo digital e reflexões sobre a amizade.

2019 foi um ano com poucas horas mortas para os jovens da Cuca Monga. Com discos novos de Capitão FaustoGanso e Luís Severo, mais a adição de Zarco (com disco de estreia a acompanhar) e de Rapaz Ego às fileiras da editora, desdobraram-se em concertos de apresentação e tours de norte a sul do país. Ora, como dizia Newton, um corpo em movimento tende a permanecer em movimento e era com certeza isso mesmo que se previa para o 2020 da editora de Alvalade: agenda cheia, a aproveitar o embalo feliz, num movimento contínuo e imperturbado. Não terá sido, portanto, fácil o shut down a que foram obrigados em meados de março deste malfadado ano, que, para além de não os deixar tocar ao vivo, os confinou às respetivas casas, tornando de repente distantes relações próximas. Newton também dizia que um corpo em repouso tende a permanecer em repouso, mas parece que neste caso não foi assim.

Terá sido num grupo de WhatsApp, o convívio possível em era pandémica, que Domingos Coimbra lançou a ideia de fazer música à distância, quiçá se para combater o tédio, se para manter os músculos criativos devidamente treinados, numa tentativa de resistir subversivamente ao repouso imposto. Estabeleceu-se uma espécie de jogo, com regras e canais próprios, para evitar batotas, tudo como devia ser. As restrições eram poucas e simples: cada um podia gravar, com os recursos que tivesse disponíveis (mais ou menos instrumentos ou tecnologia), o que quisesse, como quisesse, nomeando o colega que a seguir teria a mesma liberdade para trabalhar no material criado. Era proibido repetir nomeações para que, idealmente, todos participassem em todas as canções, e também ouvir o resultado da corrente antes das participações de todos. O jogo teve tanto sucesso que o que começou como uma brincadeira entre amigos revelou potencial suficiente para evoluir para um disco. Cuca Vida, álbum gravado em apenas dois meses, saiu assim no fim de junho, assinado pelo Conjunto Cuca Monga, ou seja, por vinte dos músicos que já nos habituámos a ouvir em BISPOCapitão FaustoEl SalvadorGANSOLuís SeveroModernosRapaz EgoReis da República e ZARCO.

Embora seja notória a existência de blocos correspondentes a intervenientes diferentes, sobretudo no que às vozes e letras diz respeito, é surpreendente a fluidez da construção e a perfeição das costuras que, em alguns casos, mal se veem, destas dez canções cadáver-esquisito virtual. Até porque o exercício não terá sido fácil – contribuir para esqueletos de músicas sem fazer ideia de como ficaria o resultado ou que volta lhe daria o próximo músico – e, eventuais batotas à parte, o resultado só vem atestar a existência de uma matriz criativa comum e de uma afinidade e compreensão mutua não só dentro de bandas como dentro da editora, o que, só por si, é bonito. Mas vejamos as canções que é por isso que aqui estamos.

Bem-dispostas e sem se levarem demasiado a sério, são como um mergulho no grupo de WhatsApp da Cuca Monga, com private jokes, referências que só eles percebem e piscadelas de olho ao mundo virtual que momentaneamente substituiu o mundo físico. “Sem Razão” abre o disco com uma voz robótica que está “aqui para agradar a você”. Com a dose certa de aleatoriedade e versos poéticos, como aquele em que Luís Severo nos diz que “a vida é bela sem razão”, é um bom exemplo de uma canção composta por blocos diferentes e ligada por um refrão gingão com coros eufóricos. No fundo ouvem-se palmas, campainhas e outros pequenos barulhos que só acrescentam à textura do som. Segue-se “Tou na Moda”, que foi single de apresentação e nos chegou acompanhada de um videoclip que tem tanto de vistoso como de caseiro, e é provavelmente a faixa mais dançante do disco. Sintetizadores saltitantes e coloridos acompanham a letra, que, não fazendo sempre sentido, parece tentar incluir o maior número possível de conceitos “da moda” por minuto, indo desde o abacate, a engates no maat, cuscar perfis digitais ou astrologia. Depois de “Escudo”, bem regada a sintetizadores e referências a jogos virtuais, surge “Celular 4”, interlúdio que, juntamente com “Celular 8”, serve de Making Of, já que as mensagens de voz de Joaquim Quadros nos deixam vislumbrar como terá decorrido a troca de ideias e como gravar um disco à distância nem sempre é fácil.

“Má Vontade”, com a sua bem definida linha de baixo, e “Liberdade”, tropical e quente, falam de temas mais sérios. Enquanto que, na primeira, Fernão Biu discorre sobre arrogância e pessoas que andam “por aí com a razão no bolso”, na segunda fala-se da frustração de quem está fechado há demasiado tempo e já não vê “a hora de ir lá fora”. Pelo meio há “Travessia”, bonita e curta balada para piano e três vozes onde, para além de Tomás Wallenstein e Luís Severo, podemos ouvir em destaque Madalena Tamen, única voz feminina da editora. Mais uma vez encontramos referências à pandemia quando Madalena e Tomás cantam juntos “quando passar esta aflição, e a vida regressar, saímos mais unidos para apanhar o sol do verão”.

A última secção do disco começa com “Proporções Bíblicas (Absolutamente à Porta)”, épica corrente rap em que cada interveniente chama o próximo para falar sobre fazer música, a quarentena, e tudo o resto. Enquanto “Se Algum Dia” dá uma perninha no reggae, “Casa Andante”, que começa por parecer outra balada, transforma-se numa reflexão spoken word, em tom pregador. “Os Amigos” fecha o álbum com uma apologia da amizade e da importância da tolerância e da comunicação, num refrão quase folk, onde, mais uma vez, é clara uma textura criada pelas várias camadas instrumentais e pelos pequenos apontamentos de sons de animais e da natureza.

Para além de ser um objeto interessante enquanto representação do que decidiu fazer um conjunto de músicos durante um período em que se viram confinados às suas casas, Cuca Vida é também uma prova da sua capacidade de adaptação, já que aqui tiveram de pôr de lado todo o conhecimento que tinham sobre como se grava um disco e procurar novos meios, de entre os que tinham à mão, para chegar aos mesmos fins. Esse feito já ninguém lhes tira.

Todo o álbum é fresco e descomplicado. Sem pretender ser muito mais do que uma brincadeira entre amigos, salta de género em género rindo-se de si próprio e da situação esquisita em que o mundo se encontra, ao mesmo tempo que perde tempo a gravar sons de cursos de água ou de passarinhos, numa deliciosa atenção aos pormenores em que começamos a reparar quando desaceleramos. Ainda que dificilmente alguma destas canções consiga competir com composições mais cuidadas de qualquer um dos elementos do Conjunto Cuca Monga, é de louvar que certas faixas não envergonhem ninguém se passarem na rádio ou numa pista de dança. Ficamos com curiosidade de ouvir como soarão as versões ao vivo e, mais importante, como vão fazer caber todos os músicos no palco. O importante é não perder o balanço.



Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

ROCK ART - 78 West - Whatever It Takes (1993)

País: Estados Unidos Estilo: Southern Hard Rock Ano: 1993 Integrantes: Robert Reilly - vocals Scott Kunkle - keyboards Austin Lyons - guitar...