sábado, 6 de maio de 2023

Ernest Hood – Neighborhoods (1975)

 

As canções que compõem Neighborhoods são muito mais do que meras canções: são, como o próprio Ernest indicou, na capa original do álbum, “imagens musicais”. E são mesmo. Facilmente percebemos porquê.

O passado, o presente e o futuro formam as coordenadas da vida de qualquer um de nós. É impossível fugir destas construções temporais; lidamos todos os dias com estas estruturas. O tempo exerce pressão em todas as vidas, e é por isso que somos todos iguais; as diferenças que nos separam nascem apenas na intensidade com que o tempo molda as nossas vidas e experiências. Cada pessoa tem o seu próprio passado, presente e futuro. Cada pessoa tem as suas próprias memórias e fontes de lembranças, no entanto, os sentimentos abstratos de saudade, nostalgia e felicidade são comuns a todos.

Ernest Hood lançou Neighborhoods em 1975. 44 anos depois, em 2019, o único álbum da vida do compositor norte-americano foi alvo de uma remasterização, e, através dessa, ganhou popularidade um pouco por todo o planeta musical – compensando a pouca fama que o trabalho teve na década de 70’, fruto do reduzido número de cópias produzidas e comercializadas. (Hood também não se interessou muito por “vender” este trabalho: a maior parte das gravações foram oferecidas a amigos.)

As canções que compõem Neighborhoods são muito mais do que meras canções: são, como o próprio Ernest indicou, na capa original do álbum, “imagens musicais”. E são mesmo. Facilmente percebemos porquê.

Na faixa inicial, “Saturday Morning Doze” a música entra na casa do nosso coração (sem autorização!), revista todas as gavetas da nossa memória, e pega nos episódios mais bonitos da nossa vida. De repente, voltamos a ser crianças. De repente, voltamos a uma época onde tudo é mais simples, calmo, bonito e laranja (a cor da bandeira da nostalgia). De repente, é verão, e estamos em casa dos nossos avós. O chilrear dos pássaros, a música leve que o vento produz ao mover-se, o som cheio de esperança de crianças que riem e brincam, transportam-nos, no espaço e no tempo, para os dias mais puros da nossa infância.

Neighborhoods é um pedaço de música verdadeiramente especial. Vale a pena atentar na vida e na experiência pessoal de Ernest Hood para compreendermos a essência deste trabalho feito de sorrisos, paz e partes do céu.

Este é o único álbum de Hood. Durante parte da sua vida, tocou com o seu irmão, Bill, na banda do saxofonista Charlie Banet. Mas tudo mudou, na década de 50, quando Ernest adoeceu, contraindo pólio. De um dia para o outro, foi forçado a viver sentado numa cadeira de rodas, e não tinha como segurar devidamente a sua guitarra de jazz. Nesse contexto, viu numa cítara a sua melhor amiga e nova companheira de todos os tempos. E desengane-se quem ache que Hood parou de produzir música; de facto, foi neste período que o compositor norte-americano aperfeiçoou as suas técnicas de produtor, tendo até auxiliado em alguns trabalhos de George Duke, por exemplo. Também por esta altura, começou a gravar os sons que o rodeavam e que serviam de banda sonora para os seus dias passados em Portland. Assim viria a nascer Neighborhoods.

Este é um álbum feito de nostalgia e brincadeiras de criança – é literalmente feito de brincadeiras de criança, e de conversas também. Em “At The Shop”, depois de uma bonita composição inventada pelo sintetizador de Hood, ouvimos duas crianças a conversar: estão ao balcão de uma loja, a comprar peanuts e sodas, a rir, enquanto falam com a vendedora. Neighborhoods é bonito por estes apontamentos. Hood, através das técnicas que implementou nesta produção, faz-nos viajar no tempo de duas formas diferentes. Primeiro, leva-nos até aos seus dias passados em Portland, na companhia dos seus vizinhos e de todas as outras pessoas que formaram os seus dias. Segundo, e de uma maneira mais sentida e profunda, leva-nos a recordar as nossas próprias infâncias, brincadeiras e memórias.

Neighborhoods não corresponde propriamente a um estilo musical predefinido (é um autêntico field recording), no entanto, em muitos momentos, tem ligações subtis ao jazz (em “After School” haverá um curto suspiro de saxofone).

Em “August Haze”, o lusco-fusco chegou, e os grilos começam a ganhar terreno, enquanto mães começam a preparar os jantares, tentando afastar os filhos dos terraços e jardins das casas, palcos autênticos de aventuras.

A melodia em “Secret Place” é preciosa e vem carregada de sentimento. O título da faixa faz metade do trabalho, ao criar, na nossa cabeça, uma sensação de refúgio seguro, onde nada nos pode magoar. E, de repente, sempre de repente, perto do fim desta faixa, começa a chover e a trovejar.

“After School” é a faixa mais longa do álbum. Por isso, é aquela que conta a história mais detalhada; são vários os intervenientes: há vários homens, carros a cruzar as estradas, cães (muitos cães), bolas de basquete a bater constantemente no chão, e crianças a desejarem “POOOOPSICLES!!!!”.

Em “Gloaming”, há um piano, que se esconde atrás de um diálogo entre um senhor mais velho, um miar de gato e a voz de um pequeno rapaz. De facto, em Neighborhoods, a música é deixada delicadamente para segundo plano – sempre. O ambiente, formado por gravações reais e autênticas, chega até aos nossos sentidos com mais força.

“From The Bluff” e “Night Games” terminam o álbum, que, depois de nos ter dado um forte e carinhoso abraço de boas-vindas, na iniciática “Saturday Morning Doze”, despede-se de nós com outro abraço, e agora com uma lágrima no fim da superfície do olho.

Estas são as palavras que Ernest Hood dedicou à sua própria produção – não as irei traduzir, pois quero que as mesmas se mantenham fiéis a Ernest: «My purpose in creating this album is to pay a debt to some beautiful and loving people. To older folks everywhere, but especially the ones who put up with my childhood pesters, those who played such an important role in the formation of comfortable memories. I hope this brings back something warm and joyful to your hearts. (…) It hardly matters in which neighborhood you sprouted. The games we played, the mocks, the terminology, and the feelings we experienced as youngsters are tantalizingly familiar. If I didn’t exactly capture your territorial terms forgive me and just let the mood suffice.».

Da mesma forma que todos nós temos o nosso próprio passado, presente e futuro, também temos os nossos álbuns preferidos e canções (que chegam mesmo a comunicar connosco a um nível mais intenso do que pessoas de carne e osso). Para mim, Neighborhoods corresponde a um desses álbuns feitos de magia e sentimentos. Dificilmente, não reproduzo toda a minha vida enquanto escuto as preciosas composições de Hood. Lembro-me de tudo, de todas as brincadeiras, de todos os sorrisos, e de todos os gelados devorados em tardes de verão. Lembro-me de todas as pessoas que construíram a minha infância, e continuam a construir, cuidadosa e ternamente, a minha vida.

Obrigado por um disco tão verdadeiro, Ernest.



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