quarta-feira, 17 de maio de 2023

Prince – 1999 (1982)

 

Com um pé na pop e outro no funk, 1999 revolucionou ambos, inundando-os de fantasia e cor. Não foi só a década de oitenta que foi moldada à sua imagem e semelhança; o próprio século XXI tem manchas de Prince por todo o lado. Afinal de contas, a moral de 1999 é eterna. Vamos todos morrer. Dancemos como se fosse a última noite.

A inquietação de Prince nos eighties é desconcertante: dez discos, quatro obras-primas (Dirty Mind1999Purple Rain e Sign O’ The Times) e uma estética irrequieta em permanente reinvenção. Prince é o Bowie dos anos 80, não só pela androginia e teatralidade, mas sobretudo pelo incansável desassossego criativo.

Dirty Mind era uma estranha mistura de R&B com new wave. Ingrediente nº 1: guitarra crua à Cars. Ingrediente nº 2: uma inesperada urgência punk. Nada mau para quem vem do pós-disco sound. Já 1999 não tem pressa alguma: o groove dura e dura e dura, de tal maneira que um só disco não basta para o albergar. A guitarra quase que desaparece, submersa em sintetizadores futuristas e caixas de ritmo maquinais (James Brown tentando engatar um ZX Spectrum).

1999 é tão festivo como apocalíptico: dança-se a noite toda porque pode não haver amanhã (“mãe, porque é que toda a gente tem uma bomba?”). O escapismo é sempre desesperado (escapa-se sempre de alguma coisa) mas para que a estratégia resulte há que esconder bem o negrume (o disco sound ocultava-o na perfeição).

Prince segue um caminho diferente, derrubando a quarta parede e desmontando, à frente de todos, a farsa escapista. A iminência de uma hecatombe nuclear é convidada para a pista de dança (o sexo e a morte beijando-se na boca). Em “Lady Cab Driver”, o sexo é uma forma de vingança contra o mundo: “isto é por eu não ter nascido bonito e alto como os meus irmãos”. Êxtase e dor trocam números de telefone a um canto.

1999 tem o condão de ser comercial e vanguardista ao mesmo tempo. O assalto ao mainstream surge nos três singles demolidores que abrem o disco: o viciante tema-título, a perfeição pop de “Little Red Corvette” e o rockabilly brincalhão de “Delirious”. O hat-trick revela-se frutuoso: antes Prince fora engavetado à força no nicho R&B, agora entra no mercado da pop, como sempre fora seu desejo. Tal como sucedera antes com Hendrix e Sly (dois dos seus heróis), a música de Prince não é negra nem branca: é da cor da sua transbordante imaginação.

O resto do álbum é bem mais fora da caixa, trocando a fórmula versão/refrão por longas jams de funk onde tudo pode acontecer: vozes robóticas à Kraftwerk (“au-to-ma-tic”); batidas motorik a acumular tensão, adiando sadicamente o alívio; sintetizadores agonizando nos cuidados intensivos; guitarradas quase metal vindas sabe Deus de onde; e, no momento what the fuck do disco, orgasmos femininos orquestrados como coros fúnebres! A sua criatividade é de tal forma desconcertante que o iconoclasta George Clinton (o seu grande mentor) soa convencional por comparação.

Com um pé na pop e outro no funk, 1999 revolucionou ambos, inundando-os de fantasia e cor. Não foi só a década de oitenta que foi moldada à sua imagem e semelhança; o próprio século XXI tem manchas de Prince por todo o lado: D’Angelo e Frank Ocean, Beck e Janelle Monae, Andre 3000 e Pharell Williams. Afinal de contas, a moral de 1999 é eterna. Vamos todos morrer. Dancemos como se fosse o último dia.



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