domingo, 28 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Aos Amores (1989)


 

Godinho volta ao amor, aos retratos sociais e aos grandes temas, no seu último registo da década de 1980

No final da década de 80, havia mudanças à vista. Depois da edição de Os amigos de Gaspar – uma espécie de parêntese – chegava ao fim o contrato de Sérgio Godinho com a PolyGram. O último disco de originais era Na vida real, de 1986, e começava a notar-se o silêncio de um artista que durante muito tempo não deixava passar mais que dois anos entre cada álbum. Por outro lado, o músico não compunha havia algum tempo, até porque sempre gostou desse incentivo de trabalhar tendo em vista um prazo, um marco oficial que o obrigue a focar-se.

Por todos estes motivos, Aos amores marca um dos últimos registos de uma fase intermédia do seu percurso, antes da reinvenção que começará em Domingo no mundo, de 1997.

O disco é dividido assumidamente em duas partes (os dois lados do vinil), com a primeira a ser atribuída ao amor, em várias das suas vertentes. Significativamente “Aos amores” é a primeira faixa, seguindo-se “A Carolina”, o relato da história de encontro e desencontro entre Godinho e Isabel Figueiredo. Temos depois “Não me beijes por engano”, recuperando um pouco o ambiente nocturno e jazzístico de Na vida real. “Que lástima, querida Fátima” é um exercício muito curioso em que, sobre um fundo cha-cha-cha, um amigo urge a sua amiga Fátima a sair da fossa amorosa em que se encontra. Esse lado A termina com “Endechas a Bárbara escrava”, tema gravado anteriormente por Zeca Afonso, com música sua sobre o poema de Camões. Tantos séculos depois, o amor ainda é o amor.

O lado B do disco não tem um conceito tão definido como a primeira parte, aproveitando o balanço para ir a vários sítios. Arranca logo com aquele que será talvez o tema mais forte de Aos Amores, o excelente “Alice no país dos matraquilhos”. É mais um retrato social íntimo, o retrato de Alice, uma rapariga ensimesmada e sem rumo, vinda de um lar atribulado, e que passa a vida no café, na mesa dos matraquilhos, onde está a sua segurança enquando a vida corre lá fora. Num excelente registo de raiz jazz, “Alice no país dos matraquilhos” remete-nos para a já velhinha “Etelvina”, de 1974, com Godinho a reconhecer a ligação entre estas duas meninas-mulheres, uma sendo quase sobrinha da outra.

Segue-se “Ouro Preto”, o reencontro feliz com Milton Nascimento, o mineiro que assina a música, enquanto Godinho nos presenteia com uma bonita letra sobre as suas lembranças físicas de Minas Gerais, como um sonho em que uma vila portuguesa é transportada, numa nuvem, para lá do Atlântico. Temos depois “O baú de Sigmund Freud”, com uma letra extraordinariamente engraçada e bem trabalhada, pegando em Freud e no seu famoso baú e lembrando que quem se quiser conhecer tem de abrir sem medos o seu próprio baú.

“Chuvas de Cabo Verde” traz-nos o cheirinho de África, tendo nascido de um episódio muito curioso. Godinho foi convidado por Dany Silva para ir assistir ao famoso Festival da Baía das Gatas. Lá chegado, o músico viu a cidade coberta de cartazes a anunciar o evento, tendo como cabeça de cartaz… Sérgio Godinho, que não levara nem banda nem sequer guitarra, já que ia apenas assistir a convite do seu amigo. Depois de se zangar, lá começou a ensaiar e, com nervos pelo meio, lá foi para palco. Pouco tempo depois, desata a chover e o festival termina abruptamente. A surpresa de Godinho foi com a festa que se fez a seguir, porque era o fim de uma dura seca na região. A zanga não foi grande, até porque Dany Silva contribui com a sua voz para os coros de “Chuvas de Cabo Verde”.

Aos Amores termina com o clássico “A Democracia (Aforismos)”, um exercício sobretudo rítmico que Godinho adora replicar com várias roupas nos seus espectáculos. “A democracia é o pior de todos os sistemas, à excepção de todos os outros” é o poderoso slogan que todos conhecemos.

Não sendo um disco tão forte como alguns dos que ficaram para trás, Aos Amores mostra-nos ainda um Godinho em bom nível, assinando alguns clássicos e continuando a dar-nos provas da sua mestria incomparável enquanto letrista.


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